10 de junho de 2016

Sexta-feira

Hoje há uma cadeira vazia, das muitas vazias que a gente não sente falta. Falo dessa em especial porque o homem que tinha a sua posse resolveu morrer. O enterro, por ironia ou não, veio a cair numa sexta-feira. Ninguém seguiu o cortejo além de um enteado e a senhora que cobrava a diária da pensão morreu de madrugada. Amanhecia, me disseram. O coração falhou quando descia a escadaria. Era um rico abandonado pela vida e pelos seus. O velório durou nem seis horas. Não chamaram ninguém, nem padre foi. A pressa de enterrar foi vontade dele. Não tinha dom pra quincas berro, primeiro por não ter amigos pra lhe segurarem os ombros, segundo por não ser um homem de estripulias.

Sexta-feira, perdão, nunca soube o nome dele, ganhou esse apelido por sempre chegar no meio da tarde de sexta aqui no bar. Pisar de leve pelo piso de tacos e sentar na sua cadeira. Ali no lado oposto ao banheiro, naquele canto sem brilho, sem circulação de ar.  Tantos anos, o lugar já era dele. A cadeira é a mesma desde o primeiro dia que sentou, madeira de juntas fortes, cumpre a obrigação de servir ao seu dono feito uma escrava que se sujeita a essa posição por honra. Não dá pra julgar, se ela aceitou essa situação o problema é dela. Coitada, até agora ninguém foi lá contar pra ela que seu dono não vem. Sabe-se lá o que ela vai fazer com essa tal liberdade. Trinta anos ou mais de prisão, não dá mais pra correr solta por aí.

Sexta-feira era o único que podia fumar aqui dentro depois dessas limitações legais que querem transformar bares em igrejas. Mas ele sempre fumou pouco, quando fumava. Tenho cá pra mim que ele ruminava a fumaça que tragava. O cinzeiro de Sexta-feira não tinha cinza pra limpar. Sua conta, quase nada, uma ou duas cervejas de seiscentos, nunca essas da moda, sempre Antarctica. Creio eu que nem era pelo gosto. Pelo jeito que olhava pro copo, devia enxergar algo diferente nela.

Sou dono desse bar faz sete anos. Tenho dinheiro de sobra pra comprar todos os bares desse centro da cidade, mas nunca faria isso. Nunca me interessei por bares, só comprei esse por causa desse senhor. No começo pensei que essa ação tinha sido pra compensar uma falta, por eu não ter tido contato com os meus avós nem conhecido meu pai. Não, nada disso, longe disso. Me intrigou o que me contaram sobre ele. Dos muitos anos, esse ritual semanal. O cigarro sem fumaça. A cadeira mucama. Entrei no bar a primeira vez sem querer. Nunca andei por essas bandas, sou muito rico pra visitar esse lado da cidade. Agora venho toda sexta. Consulto o prejuízo semanal que o bar me dá. Fico por aqui folheando relatórios, me fazendo de perdido, mas com o olhar cruzando o salão até aquela mesa.  Não me importo com dinheiro.

Tive a sorte de entrar numa sexta-feira. Carregava nas costas uma tristeza de amor, além da mochila da universidade. Me perdi porque quis. A tristeza faz essas coisas, entorta caminhos. Acho até que nem foi eu que me identifiquei com a música que vinha daqui de dentro, foi minha tristeza que quis entrar. Um samba devagar sai a punhal no peito enfiado igualmente devagar. Não vi que a mesa de Sexta-feira estava ocupada mesmo sem ele ter chegado ainda. O seu cinzeiro santo, seu copo pela metade. Quase que eu sentava. Aquele garçom que não trabalha mais aqui apontou o senhor que vinha logo atrás de mim. Era Sexta-feira, sua tristeza ele trazia no colo. Se eu tivesse olhado o relógio naquela hora teria visto, quatro e quinze. Nesse bar, das muitas coisas, aprendi que o dia começa a morrer exatamente nesse horário, é quando o sol deixa de vasculhar a vida dos outros por entres as sombras e penumbras de lugares como este. Cinzeiro e copo servido. Sexta-feira não bebia cerveja gelada. Sexta-feira não queria saciar sede. Quando tinha sede, bebia água da torneira que davam a ele gelada de uma garrafa PET velha com um gelo flutuando no meio. Mas quase nunca tinha sede. Sexta-feira queria só sentar e se fazer mais um móvel desse bar. Vi isso lá do lado oposto, do meu lado, enchendo a cara de uísque ruim. Minha tristeza, ao contrário da dele, não era bicho domado, ela era quem me domava.

Seis meses depois, o garçom me falou que o bar iria fechar. A Execut procurava comprador, mas nenhum cristão ia a uma imobiliária pra comprar um imóvel nessas ruas que só perdidos frequentam. O destino seria o de muitos outros bares, arrancar as portas e janelas, e lacrar com cimento. Nem pensei duas vezes antes de assinar o contrato, nem lembro quanto foi, nem sei de quem era. Como se isso me fizesse alguma diferença.

Nunca troquei uma palavra com ele. Ele nem me agradeceu por eu ter comprado esse bar que não dá lucro, e assim impedido suas portas de fechar. Pra onde ele iria? Pra outro bar? Ou se enterrar em casa? Na época tentei me convencer desse favor, hoje vejo mesmo que fiz por mim. Como eu largaria esse vício de observar? Quatro e quinze até sete e vinte. Sexta-feira, a única pessoa a sair do bar mais sóbria do que chegou. Vai saber pra onde ele ia. Confesso que logo perdi o interesse desse seu mundo exterior. Sexta-feira pra mim só existia nesse happy hour bem amarrado, era o assassino da última das tardes úteis. Nos outros dias, os clientes podem sempre opinar na trilha sonora, tem vez que até abre uma dança no meio do salão, música da moda, as moças adoram, vende mais, dá sempre mais gente. No sábado, tem roda de pagode, vem dançarino, arranham o piso e vão embora suados e excitados; nem olham quando digitam as contas altas no débito ou no vencimento. O que deixam pra mim, além desse dinheiro virtual? Nada, coisa nenhuma, não sou vendedor de emoções. Por outro lado, na sexta-feira, o dia das cadeiras vazias, aqui não se vende nada, se entrega a quem quer. Não impeço que entrem, não falta lugar, é só escolher um canto e ficar. Uma cadeira, um cinzeiro, um aquário de malte e lúpulo. Por conta da casa também é a água gelada. Só não deixo que mexam na música que sai dos autofalantes, a música que ninguém escolheu, pois desde sempre tocou; música pra domar a tristeza. Sim, um homem triste, bebendo só, é bonito. Isso basta.

Vindo pra cá hoje, mesmo sabendo que Sexta-feira não chegaria, me apressei. No trânsito de chuva fraca, me veio a ideia de mudar o nome do bar, colocar Bar de Sexta-feira. Mas, e aí, não sei se seria justa a homenagem. Não quero dar satisfação aos curiosos sobre a razão da mudança. Vou deixar a fachada intacta, com essa cal verde quase branca, manchada de lodo e de queimadura de sol. Minha homenagem será outra. Esse bar agora só vai abrir nas sextas-feiras, de quatro e quinze até sete e vinte. Cerveja e samba de fossa. Ninguém mais será convidado a entrar. E aquela cadeira, senhora sem ventura, vou deixar viver sua viuvez sem ser incomodada por outros homens. Quanto a mim, me deixem quieto também do meu lado com meu uísque enferrujado, vou inventar aquelas grandes conversas com aquele grande amigo com quem nunca conversei. Por fim, esqueçam que sou dono desse bar, que, apesar de estar longe de ser igreja, também tem homens que abraçaram esse tipo peculiar de sacerdócio. Aqui se venera a tristeza.