A poesia de Flávio Morgado
Flávio Morgado é poeta. Nasceu em 1989 no Rio de Janeiro. É autor de "um caderno de capa verde" (7Letras, 2012). Em junho de 2016 lançara "uma nesga de sol a mais".
pré-palavra
para Rafael Haddock-Lobo
minha vontade
é branca antes da palavra escrita
e frente ao branco
(experiência de espanto)
devo resolver
a vontade da palavra vontade
e torná-la visível
corpórea
porém indizível é a vontade -
absolutamente outra da palavra -
que
estanca
o poema
é verti
gem e
dever de escrever
(e o poema é deixar tremer)
é deixá-lo
espantado
para quando a palavra for dita
dizer tudo que o branco
diria:
que é temor e
tremor
já que mesmo quando
no poema a palavra publico
apenas o
abismo
multiplico
*
arte abstrata
ao lhe ver pintar
me perco
atento fico
ao que bo
rra
a paleta
sobre a mesa
mistura
as cores
do ainda não feito
e me é um quadro:
o seu, o da feitura
da fatura da tinta, que erra
verde.
se muito,
delega o excesso
sobre a tela
imprevista
cintila o delírio
da cor calada
do resto, do rastro
do quadro ao contrário
- imagine o chão de Pollock...
em que tudo sobra
e não está só
(des)vimos a forma
redimir o olho:
a paleta é o quadro.
- e a voz da cor
se enuncia no que ainda
é sonho.
*
os seios de Halla Bhairi
(para Gaza)
não crescerão
os seios de Halla Bhairi.
não os veremos
desabrochar
- os próprios seios visam pétalas
que não despontam
e os de Halla Bhairi
nunca despontarão
(a jovem menina morta)
não terão olhos
os seios de Halla Bhairi
que mirem as mãos cuidadosas
de outro
jovem palestino
ou judeu
- porque a paz é surpreendente.
não sentirá o peso de seus
seios, Halla Bhairi
não os adornará com óleos,
não os deixará seminus
os seios de Halla Bhairi
a saber o que se ganha (e o que se perde)
por ter seios, Halla Bhairi.
não amamentarão
os seios de Halla Bhairi
um outro futuro (que talvez fosse livre)
porque interferimos a rota de seus
seios, Halla Bhairi
e ferir o futuro
é não parar de ferir o futuro
- matamos o filho de Halla Bhairi.
crescerá em nós
os seios de Halla Bhairi
o silencioso seio, o desmedido seio
ao peso de nossa Gaza:
ao homem imposto pela voz
sob a surdez
à mão ao gatilho que desfez
o aperto
ao lucro ao revés
do preço
do afeto
estarão nus
os seios de Halla Bhairi
o silencioso seio, o reconhecível seio
ao peso de nossa casa
e estarão a sós
(em nós)
à revelia do que esquecemos
e incompletos e interrompidos
fazemos à guerra
- denegamos o amadurecimento.