O clone
Era preciso trabalhar. Trabalhar muito. Doze, quatorze horas por dia pra dar conta do número de contas que tinha pra pagar. Filhos, esposa, escola, prestação da casa, do carro, impostos, amante, amigos. Era isso. O trabalho tinha que ser incessante. E estressante. E insuportável. Nada que umas boas horas de terapia não resolvessem. Mas não resolviam.
As contas e o cansaço permaneciam lá, como um monumento ao fim. Além disso, havia o lazer, a roda de cerveja com os amigos, o motel com a esposa uma vez por mês, o passeio semanal com as crianças. Era preciso uma solução imediata antes que explodisse. A um passo da tragédia pessoal, talvez por aqueles acasos providenciais do senhor destino, um folheto caiu em suas mãos. Uma solução viável para aqueles que precisavam ser múltiplos nesses tempos modernos. No futuro, que se transformava em presente, nada era impossível. Algo que pudesse o fazer estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Era isso que precisava. Um clone. Tecnologia japonesa ultramoderna. Ah, os orientais ainda vão conquistar o mundo! Tudo o que se podia imaginar era viável de ser criado. Toda a tecnologia favorecia o ser humano. Tudo era criado para servir o homem. Os clones tinham sido planejados para resolver o problema da multiplicidade exigida pela vida moderna.
Depois de décadas de estudo chegaram a um modelo final e viável, financeiramente, para a maioria da população. Os clones eram androides que funcionavam de acordo com o DNA de seus donos. Eram seus iguais aos seus donos, só que robóticos. Simples assim. Você poderia estar trabalhando em forma de clone e passeando tranquilamente com a sua família. Ou vice e versa. O clone possuía a quantidade de sentimentos adequada às necessidades da família que o adquirira. E era criado à imagem e semelhança de seu EGO. Era assim que eram chamados os donos dos clones, o EGO. Seria interessante ter um clone. Um clone era tudo o que precisava. Seria um investimento útil e prático. Ligou para a empresa fornecedora. Marcou uma entrevista. Fez todos os procedimentos solicitados. Em dois meses o clone estaria pronto.
Quando a encomenda ficou pronta, não acreditou. Era impressionante. Era ver a si mesmo. O vendedor sorriu. Essa era a intenção. Um outro eu. Ativaram o clone e ele foi apresentado ao seu EGO. Qualquer comando era obedecido. Havia alguns testes finais, de adaptação à família. O clone passou com louvor. Foi liberado para o uso.
Em pouco tempo aquela presença, de início estranha, estava perfeitamente adaptada à rotina familiar. E o mais incrível, agora ele, como EGO, tinha o poder de escolher novamente o que queria. Trabalho, família, esposa, lazer. Era novamente dono se suas vontades. Em pouquíssimo tempo tudo estava sob controle. Mal podia acreditar. Podia optar entre estar em um almoço com a família ou de negócios. Conseguia ser mais produtivo e menos ansioso. A esposa parara de reclamar. Havia o clone para despejar os problemas e muitas vezes resolvê-los. Os filhos já não insistiam nas insuportáveis necessidades infantis de presença e participação em festinhas chatíssimas, teatros infantis, parques e outros eventos desnecessários e irritantes. O clone era tudo o que sempre precisara. O melhor investimento já feito.
Deveria estar feliz. Tudo corria de acordo com o que planejara e isso não acontecia há anos. No entanto, havia uma sensação estranha no ar. Naquela noite chegou no horário previsto, depois de uma reunião produtiva de trabalho e um happy hour com os amigos para comemorar mais um contrato lucrativo. Abriu a porta. Ninguém para recebê-lo. A esposa ajeitava a cozinha animadamente com o clone, enquanto as crianças assistiam TV. Cumprimentou a todos. Todos o cumprimentaram. De longe.
– Vou tomar um banho. – anunciou.
Achou que a esposa sorriu e que o filho assentiu com a cabeça. Tomou um longo banho para relaxar. Quando retornou para a sala a esposa já dormia. Olhou o quarto das crianças. O clone embalava o mais novo. Pensou se aquilo poderia ser bom. Deveria. Era um bom investimento. Caminhou até a sala vazia e ligou no futebol com o som baixo para não acordar a família que dormia. Sentou-se no sofá. Deixou a cabeça repousar entre as mãos em concha. Algumas lágrimas caíram. Ouviu passos. Ouviu abrirem a geladeira. Secou as lágrimas. O clone sentou ao seu lado e estendeu a mão com uma cerveja gelada. Olhou para ele. Olhou para si. Pegou a cerveja. Abriram a lata no mesmo instante e beberam o primeiro gole sincronizadamente. Parecia até um balé. Riram, também, juntos.
– Achei que você não estava bem. Achei que uma cerveja seria bom.
O clone havia sido programado para agradar. E agradava. Um cerveja era um néctar naquele momento.
– Era o que eu precisava.
O clone sorriu e ficaram em silêncio, um ao lado do outro. Como um espelho, os gestos eram assustadoramente semelhantes.
– É normal isso que você está sentindo.
A voz do clone havia interrompido o silêncio.
– Você estava sobrecarregado. Agora que eu ocupei os espaços que você me designou, a sensação de vazio é comum aparecer.
O clone era sábio. A sensação de vazio era presente.
– E uma sensação estranha... parece que não sentem a minha ausência...
O clone sorriu.
– Você não está ausente. Você sou eu.
Era e não era. O clone prosseguiu, falando sobre a esposa e os filhos, contando as coisas que haviam ocorrido nos últimos tempos, perguntando sobre os negócios. Explicava como era normal entre os EGOS sentirem-se relegados a um segundo plano. Era apenas uma sensação. A família não sentia sua falta, pois ela não havia. O clone estava lá para supri-la e dar ao EGO a liberdade necessária para ter uma vida menos pesada, mais produtiva e criativa. Era muito bom conversar com o clone. Era como falar consigo mesmo. Combinaram novas conversas. Ambos concordaram que seria bom para o EGO.
A cada dia uma nova conversa, após o repouso de todos. O clone passava tudo o que havia acontecido durante o dia, o que dava ao EGO um certo controle sobre a sua vida novamente. Sabia que o filho mais velho havia se formado na pré-escola, que o mais novo deixara as fraldas, que a esposa havia comprado uma nova geladeira e que havia recebido uma promoção no trabalho. Todas as informações necessárias para que a sua vida fosse sua.
Naquele final de semana estava tudo combinado para uma viagem com a família. O clone ficaria, pois nem todos os parentes concordavam com a aquisição dele. A mulher e os filhos iriam um dia antes, na sexta-feira, já que a esposa conseguira uma folga. Ele iria no sábado, pois teria uma reunião importante na véspera.
Chegou exausto sexta à noite em casa. Ainda teria que arrumar a mala, embora fosse levar apenas algumas roupas para o final de semana. O clone o esperava.
– Preparei alguma coisa para você comer.
Ele sempre perfeito e, logicamente, a comida era a sua favorita. Uma cerveja e uma boa conversa com o clone depois do jantar fariam bem para desestressar. Sentiria falta dessas conversas nos dias que passaria fora. Beberam e falaram sobre a vida. Conversaram sobre planos futuros. Todos incluíam o clone. Sem ele nada parecia fazer sentindo. Tornara-se imprescindível em sua vida.
– Sabe que vou sentir falta dessas conversas quando você viajar?
Então, o clone sentia o mesmo. Obviamente surpreendente. Sorriu para a sua imagem e semelhança.
– Sentiremos.
Sorriram e beberam um gole de cerveja. Na verdade não estava sentindo vontade de ir. Preferiria ficar e passar o final de semana com o clone. Poderiam colocar algumas coisas em ordem, poderiam planejar uma viagem na qual o clone estaria incluído. Poderia tudo junto do clone. Foi tomado de um assombro ao aperceber-se disso. Olhou nos olhos do clone. Era como olhar em seus próprios olhos. Tocou o rosto da sua imagem. Com as duas mãos puxou o rosto do clone para um beijo. Havia o desejo pelo clone. Algo que não conseguia explicar, mas lhe tomava todos os sentidos. O beijo era perfeito. Tudo nele era perfeito. Deitou-se em sua cama com o clone e, quando esse o penetrou, sentiu que era um homem completo. Nada mais faltava, nada mais excedia. Atingira seu melhor.
Acordaram, nus e felizes. Não havia necessidade de palavras, o clone o entendia com o olhar. Arrumaram as malas. Grandes malas para caber a roupa toda. Não deixaria resquícios de si por lá. Nem do clone. Saíram pelo mundo, juntos, felizes e completos. De lembrança aos que ficaram, apenas o bilhete na porta da geladeira nova: “Fui ao encontro de mim”.