4 de junho de 2016

O poder da sátira na poesia de Luiz Filho

 

“Das bocadas infernéticas” (Penalux, 2016), terceiro livro do autor piauiense Luiz Filho de Oliveira, é um livro de poemas satíricos completamente mergulhado na pós-modernidade. Dividido em dois blocos: “Das bocadas” e “Infernéticas”, é uma obra um tanto irregular: a impressão que se tem é de que são dois livros em um único volume. Vale ressalvar aqui, no entanto, que Luiz Filho tem nos dois momentos poéticos uma energia em torno da poesia bastante forte, que transcende o hoje e o agora, embora seus poemas sejam relativos ao nosso dia a dia.

A edição do livro é bem cuidada: a capa sugestiva, e o projeto gráfico bastante cuidadoso, contribuem para que seja um objeto de arte palpável, sensível. Como canta Caetano: “Os livros são objetos transcendentes/ Mas podemos amá-los do amor táctil/ Que votamos aos maços de cigarro”. A divisão supramencionada do livro está também na diagramação: “Das bocadas” é impressa em uma fonte, e “Infernéticas”, em outra.

Em “Das bocadas”, a sátira é feita de tiradas sobre política, sexo e a própria poesia. Não faltam críticas a nenhum tipo caricato ou caricaturável, embora não sejam declinados nomes de pessoas ou grupos. A primeira metade do livro está inserida numa linha satírica que vem de Gregório de Matos até Juó Bananère. Aqui encontram-se um estilo versificador que transforma os pronomes “lhe” e “lhes” em “le” e “les”, suprimindo o “h”. Outro recurso são as desconcertantes junções de pronomes com verbos, como no trecho: “Pode o Poeta,/ a mar de poesias,/ amar o que le-faria/ um legítimo assassino/ de ficção tão atrevido,/ quais as bocas todas/ do satírico!” (“Arma, Poeta, a Boca de Infernos”).

Esse “le-faria” é um bom exemplo do toque pessoal do autor no campo da sátira: lê-se isso estranhamente, como se o autor fosse quase um iletrado, e talvez o objetivo seja tanto alcançar um novo patamar linguístico e lírico quanto fazer passar-se por ingênuo. Mas essas tiradas que causam estranhamento, que parecem não pertencer à nossa língua, faz com que nos detenhamos mais tempo em cada poema ou excerto de poema, o que faz redobrar a atenção e multiplicar o deleite da leitura.

Leiamos, a título de ilustração, o primeiro poema da sequência “Desbocada Poética das Bocadas a Poesia Infernética”:

“I. Postagem a poetastros ou estrelas metidos a donos da Poesia

 

Estazinha Poesia é o que

quiser, o que o-for: que redun-

dante-se cômica, divina,

 

confessional, se subjetiva

o lírico de eu-satíricos

na Rede, o escambau!

 

Nem mesmo um Poeta astro

ou essoutros sem verve (verbos fracos!)

Vão-se-meter nela, senão para poemaltratá-los.”

 

Aqui pode-se notar com clareza o estilo que o autor propõe ao seu eu-lírico, os “eu-satíricos”: além dos recursos estilísticos já mencionados, presentes neste poema, há ainda o uso de neologismo, a que o autor recorre bastante, e que faz de maneira muito feliz (“poemaltratá-los” é apenas um de diversos neologismos no livro, e um dos melhores).

Na primeira estrofe, recorre-se a Dante, o da “Divina Comédia”, o clássico, o moralista, até mesmo: “dante-se cômica, divina”. O que se desmonta em seguida: “ou essoutros sem verve (verbos fracos!)/ [...]poemaltratá-los”.

Luiz Filho escreveu, em “Das bocadas”, dezenas de poemas de excelente calibre e de uma força satírica não vista há muito. Por outro lado, o segundo bloco do livro, “Infernéticas”, perde a força pela comparação: enquanto em “Das bocadas” a verborragia frenética da sátira inteligente abunda, em “Infernéticas” o estilo fraqueja. Vale, porém, dizer que, afinal, “Infernéticas” não é um conjunto malsucedido de poemas, muito pelo contrário. Apenas na comparação com a primeira parte mostra-se um tanto menor poeticamente.

Aqui, o autor tem como tema principal a cibernética infernal dos nossos dias: infernéticas, portanto. Poemas que chegam a ser crônicas versificadas da atualidade, como em “D. S. T. (Desenfeitoda Sua Testa)”:

 

“Com dilomas acumulados,

um poeta clama em clamídias sociais

sem a gonorraiva que o afeta:

depois que trepou nela o pálido cara,

ela descaralhou pequenas feridas

nos órgãos postais que ele poeta,

e a chífilis enfeitou sua testa!”

 

Parece que a sátira e a pornografia estão voltando a ser temas de livros de poesias. Podemos mencionar aqui outro autor satírico: Manoel Herzog, premiado com um Jabuti por “A comédia de Alissia Bloom” (Patuá, 2014).

Quem sabe, agora, este autor piauiense sobre o qual nos debruçamos, com suas investidas tirânicas contra o bom-mocismo, alcance também um prêmio que mereça. Independente disso, Luiz Filho já inscreveu seu nome como poeta, dos melhores, da verve satírica nacional.