2 de junho de 2016

DAS DIFICULDADES DO DESAPEGO

Recentemente, me mudei para um apartamento menor, e não fui sozinho: levei três gatas. Dessa vez, também tenho outra companhia para além delas; o apartamento é compartilhado. O espaço que antes era só meu e das gatas, agora é dividido com mais um além de mim, que por conseguinte tem seu próprio quarto e ocupa seus próprios espaços.

Já era uma decisão antiga, mas quando vi a proximidade deste momento, ocorrido há alguns meses, acelerou-se em mim um processo que já vinha acontecendo em silêncio, mas inegável: eu precisava me livrar de algumas coisas, a maioria delas, livros.

Como nunca fui muito apegado a coisas, e como hoje tenho a certeza de que jamais lerei muito do que acumulei durante a adolescência, doar boa parte deles não chega a ser um problema, inclusive porque sei quais deles não me interessam mais.

O apartamento onde morei até bem pouco tempo tem três quartos: o maior, ocupado por mim, e dois outros menores. De um deles, fiz um escritório. O outro, que antes não tinha mais do que poucas quinquilharias, estava apinhado de coisas. Nos preparativos para a mudança, eu tinha mais de trinta caixas repletas de livros, que antes eram guardadas em outro lugar, morando comigo.

Enquanto espécie, somos seres gregários. Por mais que o cinema e a literatura nos mostrem casos vigorosos de pessoas solitárias que de alguma forma viveram bem na ausência de outras pessoas, a realidade é bem diferente disso. O velho e amargo “nasci só, hei de morrer só” é uma verdade geralmente proferida por aqueles que são mais carentes, e que dariam tudo para não estarem naquela condição, apesar de vomitarem o oposto disso.

Eu mesmo convivo muito bem comigo mesmo. Posso passar dias inteiros sem sair de casa, ou no máximo dar um pulo no supermercado ou para pagar algumas contas, e continuo bem. Mas gosto da solidão consentida. Aquela que muitas vezes se faz, inclusive, necessária para a sanidade, inserido que somos neste mundo de tanta informação, que não temos tempo, nem paciência, para digerir. Estar sozinho por vontade é uma coisa. E de certa forma, até fácil, uma vez que este habitar a si mesmo é bom quando sabemos que há pessoas porta afora que amamos e que também nos querem bem, e que estariam conosco, uma vez solicitadas. Amizade é, dentre outras coisas, isto. Evidentemente, não estou falando aqui do ato egoísta do isolamento que só é rompido pelo lado do heremita, que sai de sua reclusão para aliviar suas carências e depois volta a fechar-se em si mesmo, e não se disponibiliza para o outro. O nome disso é filáucia, ou um tremendo mau-caratismo.

Seja qual for a personalidade que mostramos socialmente, convivendo diariamente com outros ou vivendo em semi-reclusão e vivendo apenas com seus próprios demônios, o certo é que somos seres que, naturalmente, acumulamos.

Alguns, os mais desenvolvidos, acumulam sabedoria, inteligência, sentimentos de extrema grandeza. Outros, mais fincados na terra, acumulam coisas, objetos. Quinquilharias atulhadas umas por cima de outras, a ponto de muitas vezes sequer termos onde guardá-las. Mas não só não as organizamos (porque deve dar uma colossal preguiça olhar para pilhas de coisas e não saber por onde começar) como não nos desapegamos delas (do que, exatamente, deveríamos nos desfazer?).

Eis que o mundo moderno e seus tentáculos rapidamente surgiram com uma saída: criaram as caixas de armazenamento, objetos feitos de aço, no formato de contêiner, com uma porta na frente e um cadeado, onde a pessoa que se disponibilizar a alugá-lo poderá guardar o que bem entender, da sua bola de tênis em desuso a um cadáver.

Só nos Estados Unidos são mais de cinquenta mil caixas de self-storage (auto-armazenamento), como eles chamam por lá. Empresas compram um terreno imenso e constroem corredores e mais corredores de caixas de aço, idênticas umas às outras, para pessoas que, não tendo mais onde enfiar suas tralhas em casa, se dão ao trabalho de alugar um depósito extra para aquilo que ela provavelmente nem precisa mais.

E isso, por si só, já diz muito sobre a nossa própria natureza.

Mas calma: se você gostou da ideia, saiba que este é um campo em expansão no Brasil também. Já são pouco mais de cem empresas de auto-armazenamento por aqui. E a previsão é que em breve esse número se multiplique por cinco.

É algo para se refletir. E não se trata do fato de que os apartamentos estão ficando cada vez menores. Nós é que resistimos em admitir que acumulamos, que juntamos, e temos uma imensa dificuldade de nos desapegarmos. Dizem que nosso sangue latino, quente, que gosta do contato e da proximidade, explica parte disso. Porém, também é da nossa convivência em grupo nos reeducarmos.

Se precisamos chegar ao ponto de termos algo fora de nossas próprias casas para armazenar aquilo que talvez jamais voltaremos a utilizar, é um sinal de que provavelmente temos muito mais coisas do que precisamos.

Mas afinal, por que temos tanta dificuldade em jogar fora, ou passar adiante, aquilo que não nos serve ou não cabe mais no que somos no atualmente? As razões podem ser muitas, desde lembranças a registros de uma vida que não se quer esquecer, passando pela velha desculpa: pode ser que um dia eu precise! (E se precisar, nem lembra que tem).

O certo é que adentramos num outro nicho, o da super produção de coisas no mundo. De estarmos sempre e cada vez mais massificados pela necessidade, criada pelo meio, de que precisamos de coisas que, na verdade, passaríamos muito bem sem. Não custa lembrar que temos um só planeta onde enfiar todo o lixo, que em sua maioria nem reciclável é.

Caminhamos rumo a um desastre. As crescentes epidemias mostram que o planeta reage, e de forma impiedosa e arrasadora. Existe um ditado em inglês que diz: “Às vezes se faz necessário ser cruel para se mostrar que é gentil”.

Se não der tempo, sim, vai ser desse jeitinho.