Outros cantos, outras leituras
Romances que traçam paralelos entre o passado e o presente, sei de muitos. Pode ser por artes da linguagem, pode tratar de um mistério não resolvido, uma trama que ecoa em um ou outro tempo. Pode ter a complexidade do fio da memória proustiano ou estabelecer um diálogo com várias vozes, uma contradizendo a outra. São muitos os caminhos. Romance é campo de provas. Mas também é outra coisa. Em Maria Valéria Rezende, tem mais. Que o digam seus leitores conquistados e os ainda por conquistar.
Ainda na ressaca do prêmio Jabuti, que premiou o belo Quarenta Dias, a autora santista que abraçou a Paraíba tem agora uma nova obra, com um texto que já tem alguns anos e que se foi maturando, expandindo. Outros cantos, também pela editora Alfaguara, trata de um duplo percurso: o da memória e o da estrada que leva ao sertão mais profundo. Maria, que trata com educação de base, alinhava um sem número de lembranças e passa por vários pontos do mundo para recompor o diálogo entre sua história pessoal e a educação que muda as pessoas. Sobretudo, o motivo que reforça seu percurso, a retomada do passado dentro da luz do presente, é o que torna a viagem tão interativa: o leitor está ao lado, na poltrona do ônibus, entre paradas provisórias no tempo da estrada e mergulhos bem mais abissais no passado da personagem.
Há trechos que parece entrelaçar os fios de outros romances, desse colar de histórias pequenas que Valéria tão bem as tem, trata de criar com um artesanato sutil. A história da nossa gente, vista com um olho mais acurado, é feita de tecidos. A arte de contar, na boca de Maria, assume um tom de resistência:
“quanto mais me dedicava a aprender, compreender e ensinar, mas percebia quão longo seria o caminho, mas eu queria, sim, ficar ali, cumprindo o papel que me deram eles de lhes contar histórias, ou o que me tinham dado os companheiros, de mudar a História, sob a máscara da professora que o governo mandou para ensinar gente grande a ler, livro nenhum por enquanto, todos os livros do mundo um dia, depois, e esperando chegarem a hora e os sinais da possibilidade de mudar o que produzia tantas dores, sem perder, porém, o que era só beleza.”
Outros cantos é um romance elaborado, de uma linguagem fluida (e não tinha como ser) com uma naturalidade invejável. Adquiri numa livraria aqui da capital e, indicado para muitos leitores, soube que sua leitura pede retorno quase imediato. Vem daí que os romances (e muitos contos) de Maria Valéria Rezende segue uma variedade de vozes que estão escondidas dentro de uma condição marginal: ela dá (e recupera) as vozes e vidas de um Brasil não visto na mídia, não quantificado nas estatísticas. Seja nos subúrbios de uma Porto Alegre, seja no Sertão escondido, mas não menos explorado por forças políticas de interesses escusos. Sobretudo, Outros cantos não deixa de provar que a centelha humana resiste, volta a percorrer a estrada, funda uma nova esperança.
André Ricardo Aguiar Escritor paraibano. Publicou A idade das chuvas (Editora Patuá) e Chá de sumiço e outros poemas assombrados (Autêntica).