Entrevista com Chico Lopes
Em exclusividade para o LiteraturaBr, Vivian de Moraes entrevista o escritor Chico Lopes, que lançou recentemente seu segundo romance, “Corpos furtivos”, pela Penalux, fala um pouco sobre o cenário literário na atualidade, paixões e idiossincrasias e as dificuldades para sobreviver no meio editorial, mesmo tendo sido premiado com um Jabuti. Transitando por pequenas editoras, ele encerra a entrevista dando um conselho aos jovens escritores. Leia a seguir:
Vivian de Moraes: Com um currículo como o seu, que inclui um Jabuti, em 2012, por que motivo você tem publicado seus livros em editoras pequenas como a Penalux e a Patuá, que não oferecem, por exemplo, distribuição em livrarias em todo o Brasil?
Chico Lopes: Boa pergunta, Vivian. Mas não é fácil lidar com editores no país. Um Jabuti, ou outros prêmios, não são garantia de que as editoras olharão para nós com outros olhos. A própria 34 rejeitou um romance que lhe enviei logo após, e hoje em dia é coberto de elogios. Outras editoras se pautam por um comercialismo de natureza insondável, visto que nem sempre lançam autores tão "vendáveis" assim. Fui recomendado a uma grande editora aí, e um dos editores adorou meu segundo romance (aquele rejeitado pela 34), mas disse que não era "suficientemente comercial". De modo que as pequenas são nosso porto seguro, ainda que tenham distribuição limitada.
Será que podemos dizer que, de certo modo, o mercado editorial de grande porte e distribuição é muito parecido com o americano, buscando possíveis best-sellers para lançamento?
Chico: É muito parecido, sim. E, aliás, como tradutor, fiz muitos trabalhos (dos quais não me arrependo, claro, pois significaram a continuidade da minha sobrevivência) que me revelaram que esses livros tipo Fantasia, Bruxaria, Magia, com príncipes, dragões e adolescentes superpoderosos, são uma verdadeira linha de montagem, sem cara autoral, e são eles que vêm dominando a cena brasileira, com novos autores jovens surgindo nessa faixa. Nada tenho contra ninguém escrever o que bem entenda, mas é uma faixa altamente pasteurizada e massificada. E os editores querem em geral que a gente se submeta. Fazem, na verdade, a sua parte lógica: precisam de retorno para seus investimentos. Mas, se não houver generosidade, e uma visão que inclua o risco, a literatura mais séria e empenhada em ser arte literária DE FATO não sobrevive. O capitalismo editorial tem nivelado tudo por baixo.
Eu ia perguntar justamente como você vê a cena brasileira. Quais autores nacionais contemporâneos que você lê? Falta um "quê" a mais para os nossos escritores?
Chico: Eu acho que há bons autores em penca. Tenho uma ligação natural com Nelson de Oliveira e a turma da Geração 90, que acompanhei de perto. Gosto de Maria Valéria Rezende, que já é bem conhecida, de Ricardo Lísias, Luiz Ruffato, e de gente menos famosa como Edmar Monteiro, Nathan Souza, Marcelo Adifa, misturando aí os gêneros, incluindo a poesia. Aliás, o país tem um grande poeta, desconhecido a não ser entre pares, o Iacyr Anderson Freitas, de Juiz de Fora. Seu livro “A soleira e o século” é indispensável.
Quanto ao "quê" que poderia estar faltando, acredito que não é qualidade, mas distribuição e penetração maior. E aí se depara também com esse desinteresse terrível que o povo em geral demonstra pela literatura...
Li recentemente uma reportagem que dizia que nunca se vendeu tanto livro no Brasil, mesmo com a crise. Não se descreveu, contudo, que tipo de livro é mais vendido. Parece-me que o autor (artista) está sempre correndo atrás do prejuízo, fazendo palestras em feiras literárias, promovendo workshops de escrita criativa etc. Gostaria que você comentasse o que acha disso, tanto pela questão da subsistência do autor quanto o que ele promete ao leitor e ao aspirante literário. Não tem muita fumaça para pouco fogo?
Chico: Exato, Vivian, é uma imensa cortina de fumaça. Os autores mais sérios ficam pendurados a feiras (e às vezes, como no meu caso, somos convidados sem que os empresários "feirantes" queiram sequer pagar transporte e hospedagem, isso já me aconteceu). Além das feiras, há eventos aqui e ali que nos convidam, mas de maneira tão esporádica que nada podem assegurar. Quanto a esse boom de leituras, infelizmente, constato que é de leituras tipo "Cinquenta tons..." e variações, ou pieguices imensas, ou livros que pouco ultrapassam a linha da autoajuda, ou livros de fantasia em que super-heróis adolescentes fazem o diabo (numa óbvia e pueril projeção de um desejo de onipotência). Isso não é promissor. Para muitos observadores mais otimistas, parece que as pessoas poderão começar com isso – leituras deterioradas – e ir evoluindo para leituras melhores. Mas eu questiono isso um pouco, porque boa parte desses leitores (conheço muitos) atravessará a vida só gostando disso e rejeitando o resto (o que de fato importa) como "leitura chata e intelectualizada". Não acredito que essa massificação nos seja útil.
Chico, estamos vivendo um momento histórico em nosso país e artistas se posicionam de um lado e de outro. Você acha lícito que um artista seja combatente politicamente, considera isso importante? Acredita que ele possa levar isso para a obra sem comprometer a qualidade do que produz?
Chico: Acredito que essencialmente somos seres políticos. Mas a infiltração da ideologia da literatura não me parece nada recomendável. Creio que a ideologia atropela a construção de personagens verossímeis e de profundidade maior, já que ela tende a achatar e reduzir as dimensões subjetivas à necessidade do discurso, da posição política. Uma grande obra literária prescinde dessas declarações pomposas e em geral vazias, de pura retórica, que os ideólogos (sejam de direita, sejam de esquerda) fazem. Eu me sinto fundamentalmente um homem de oposição, de revolta, mas estarei sempre mais para Camus do que para Sartre. Creio que a reivindicação que a arte faz é de natureza mais profunda que a política, que só deseja reformas para o bem-estar material das pessoas (nada contra, mas é um objetivo limitado). A arte reivindica, como dizia Rimbaud, que "mudemos a vida", não que "mudemos de vida".
Vamos, então, falar dos seus livros. Como está sendo recebido seu segundo romance e último lançamento, "Corpos furtivos"?
Chico: Olha, em termos de penetração, é aquela que uma edição limitada pode ter, até onde vejo. Mas a fortuna crítica está excelente, não houve um só leitor que não se entusiasmasse. E esse livro encerra a lição de que falamos no início – tinha uma forma diferente há quatro anos, quando foi mandado para a 34 (que publicou “O estranho no corredor”) e rejeitado. Rejeitado por outras editoras por razões comerciais também. Na Penalux, por onde finalmente o publiquei, ele vem fazendo uma carreira criticamente brilhante.
Creio que ele constitui o oposto dos "Cinquenta tons..." e que com ele construí a personagem feminina mais sólida da minha obra, a pobre Eunice, cinéfila, leitora de romances água-com-açúcar, que vive uma vida de "corpos furtivos", romances desesperados com machões apenas lascivos, e persegue um homem pelas ruas de sua cidade atraída pelo seu cheiro.
Quem leu "O estranho no corredor" vai reconhecer o mesmo autor no segundo romance?
O nó essencial do “Corpos furtivos” é a denúncia contundente do machismo. Não creio
que se pareça com “O estranho no corredor”, já pelo fato de o personagem ser feminino (e eu visto sua camisa completamente). Creio que o leitor de “O estranho...” poderá se surpreender, e tem se surpreendido, mas positivamente.
Isso é muito relevante, pois um levantamento divulgado recentemente aponta que as personagens principais dos romances brasileiros têm sido homens brancos, bem-sucedidos e cosmopolita.
Sim, Corpos furtivos, e isso me agrada muito, vai contra a corrente.
Mas você declarou recentemente em entrevista que segue a linha dos "pobres-diabos". De onde vem esse conceito e por que o pobre-diabo é relevante na literatura nacional? Pelo fato de estarmos em uma sociedade ainda precarizada, ou isso independe da condição do país?
Chico: Recentemente, uma amiga, Danielle Carvalho, que ficou muito impressionada com o romance, comparou Eunice à Blanche Dubois de "Um bonde chamado desejo" (peça teatral de Tenessee Williams) e, pra minha alegria, levou um exemplar dele para a Maria Luiza Mendonça, atriz que está vivendo o papel de Blanche com grande sucesso em SP. No caso do pobre-diabo. Creio que o pobre-diabo, na verdade, ocupa um lugar estratégico em toda literatura, não apenas na brasileira: ele é um proscrito, ele não foi realmente assimilado pelo Sistema, fosse pela precariedade econômica, fosse por sua sensibilidade desviante. Daí, ele olha o Mundo com um senso crítico que surpreende sempre, e nos revela facetas originais da realidade. Não gosto de personagens vencedores, eles me dão ojeriza (digo vencedores no sentido que o Sistema empresta à palavra: insensível, macho glorioso e mafioso).
Você está preparando outro livro de poesia. O primeiro, "Caderno Provinciano" (Patuá, 2013), foi finalista do então Portugal Telecom, e foi lançado depois de uma longa carreira bem-sucedida na prosa. Como é que você escreve poesia? Quais as suas motivações? O que podemos esperar de seu novo livro, ele já tem um nome?
Chico: Sim, o livro já existe, e creio que sairá em julho pela Penalux. Chama-se "Florir no Escuro". Penso que é este o dever e a condição do poeta: ele tem que dar flores na escuridão, flores que no mínimo a iluminem um pouco. Mas minha relação com a poesia é bem mais complicada do que com a prosa. Quando comecei a escrever, foi com poesia, com letras de música popular que um amigo chegou a musicar e ganhar festivais (dois) lá pelo interior, nos anos 70. Mas o contato com livros de Cabral, Cecília, Pessoa, Drummond, Rilke, foi me deixando com vontade de ser um poeta mais culto, mais literário, digamos (visto que escrever para melodias populares tem seus limites). Escrevi a maior parte dos meus poemas nos anos 80 e 90, e de maneira muito esporádica. "Caderno provinciano" foi a primeira reunião, e me deixou surpreso. Eu achava que não teria repercussão alguma, mas foi extremamente bem acolhido, o que me animou a escrever o segundo, na verdade uma reunião de poemas há muito existentes a outros novos.
Você tem em Proust o seu autor favorito, e já declarou em entrevista admirar as personagens Madame Bovary e Eugênia Grandet. Sendo tradutor de outras línguas, por que você aparenta gostar tanto de literatura francesa?
Chico: Pois é, boa pergunta. Eu venero esses franceses todos. Mas não aprendi francês, o que lamento muito. Aprendi sim Inglês, e até porque pertenço àquela década que acompanhou toda a carreira dos Beatles e foi vidrada por rock. Eu escrevia poemas em Inglês. Tinha extrema facilidade para a língua, e fui me aperfeiçoando, mas de maneira autodidata, a ponto de chegar a ser tradutor profissional, veja só. Mas eu diria que a literatura francesa, junto com a russa, me parece o topo. Os americanos e os ingleses não me impressionam tanto.
Você tem nos autores franceses e russos uma influência?
Chico: Sim, evidente, meus pais espirituais, sinto, são Dostoiévski e Proust. Se eu tiver influência deles, como acho que tenho, me sentirei no céu, ou à beira dele. Camus, Flaubert, li muito os franceses. E dos russos impossível esquecer Tolstói, Gógol também. Sinto-me muito influenciado por essa grande literatura do século '19. Em prosa inglesa, nada me parece superior a Henry James, de que já fiz duas traduções: “Os papéis de Aspern” e “A volta do parafuso”.
Aliás, "Os papéis de Aspern" saiu recentemente, junto com o seu romance, também pela Penalux. Ele está lhe trazendo alegrias?
Chico: Sim, as leituras têm sido muito boas. A edição saiu com um esmero raro.
Como você escreve? Tem uma rotina, rituais, manias?
Chico: Não tenho muita rotina não. Quando traduzo, sim, pois fico submetido a prazos e não discuto com eles, é trabalho. Mas em geral a ficção, a poesia, para mim, é um pouco caso de inspiração, ao menos no jorro inicial. Mas reescrevo muito, corto muito, e gosto de ficar muito tempo com um texto, cozinhando-o, por assim dizer, com a vantagem alquímica que o tempo dá. Acho o prazer de criar ficção e poesia o máximo da vida; o da pintura, a que também me dedico, também é enorme, mas de natureza diferente.
Essa seria a minha próxima pergunta. Gostaria que você comentasse sua relação com as outras vertentes artísticas, como a pintura e o cinema, para o qual você escreveu um ótimo livro de ensaios ("Na sala escura", Penalux, 2014).
Chico: É relação de paixão, não há outra explicação. Em menino, muito antes de pensar em escrever, eu desenhava, desenhava o tempo todo, e frequentei uma escolinha de pintura bem precária, na minha terra natal. Mas fui me apegando à pintura através dos livros. Fora daí, não perdia filmes no cinema da terra, e depois, com a era do VHS e DVD, fiquei ainda mais fanático, mais sistemático. Isso culminou com o fato de o Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas me convidar para ser programador e comentarista de filmes no cinevideoclube que eles mantêm, e fiquei nisso por 18 anos. Tornei-me conhecido em Poços muito mais como crítico de cinema, aliás. E acho que essas coisas se interpenetram na minha literatura, em que personagens pintores e cinéfilos aparecem com certa regularidade. Mas a literatura, de fato, em minha vida, tomou a frente de tudo.
Em todo meio profissional existe muita competição e rivalidade. Sabemos que escritores também têm suas suscetibilidades. Por exemplo, quando o Ruffato fez o discurso dele em Genebra, em 2014, houve muita polêmica, à parte outras questões. Você se considera um artista vaidoso?
Chico: Sou vaidoso sim, e como não o ser? – a vaidade é um tremendo impulsionador. Mas também pode ser uma inimiga cruel, estúpida. E por isso me policio. Às vezes tenho atitudes de que me arrependo, e procuro me penitenciar. Mas o problema está em querermos (ou julgarmos, ingenuamente) que um artista talentoso tenha que ser também moralmente superior. Aí entra o dedo moralista e uma certa pieguice também, pois a arte vive num reino em que a moral tradicional tem pouco a fazer – sabemos que toda arte que moraliza tem fôlego muito curto. E há escritores que admiro, como Truman Capote, que eu não gostaria de ter conhecido como pessoa, pela sua canalhice (a biografia dele chega a ser assustadora, pelas coisas que fazia com seus amantes e pela língua ferina e insensível). Mas não dispensaria sua obra nunca. A arte é sempre superior ao artista. Creio, no entanto, que vivendo como vivo no interior, há um isolamento que é propício (nesse sentido de invejas, rivalidades e rasteiras). O mundo literário é minúsculo, quando não totalmente inexistente, no interior, e não há pressões nem egos desenfreados nem conflitos grupais.
Quais são seus projetos agora?
Chico: Penso em escrever um terceiro romance e em publicar uma antologia de meus dois livros de contos iniciais (publicados sob patrocínio pelo Instituto Moreira Salles e difíceis de encontrar). Mas gosto especialmente de ampliar meu círculo de amigos no Facebook e conversar de maneira bem aberta com as pessoas. Seguirei traduzindo, que é minha única fonte de remuneração. E "desafinando o coro dos contentes", como dizia o grande Torquato Neto.
Obrigada, Chico. Há algo que queira acrescentar?
Sim, eu diria aos escritores novos que pensassem um pouco mais antes de publicar seus livros. Publiquei meu primeiro só aos 48 anos, depois de passar todo esse tempo escrevendo, rasgando, purgando textos. A pressa é inimiga mortal da literatura, de qualquer arte, aliás. E hoje em dia, mal o sujeito sente que tem algo parecido a um livrinho, já quer publicá-lo, já quer dar-se ares de celebridade temperamental. Isso é uma tremenda ingenuidade e colabora para arruinar os talentos precocemente.
* Chico Lopes (Francisco Carlos Lopes) nasceu em 6 de maio de 1952 em Novo Horizonte – SP e reside em Brotas, SP, desde 2012. Foi programador e apresentador de filmes no Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas (Casa da Cultura) por 18 anos. Em Poços também atuou no jornalismo cultural no diário “Mantiqueira” e no jornal mensal “Brand News”, afora outras publicações. Publicou três livros de contos – “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004), prefaciados por Ignácio de L. Brandão e Nelson de Oliveira, e “Hóspedes do vento” (Nankin, 2007); um romance – “O estranho no corredor” (2011), vencedor de um Jabuti em 2012. Publicou suas memórias, “A herança e a procura”, em 2012, seguidos pelo livro de poesia “Caderno provinciano” (que concorreu ao prêmio Telecom como finalista em 2014) e os de ensaios “Na sala escura” e “Um pio de coruja” (2014). Finalmente, em 2015, publicou um segundo romance, “Corpos furtivos”, todos pela editora Penalux. Tradutor de ficção em Inglês e Espanhol, realizou mais de 30 traduções para grandes editoras nacionais como Ediouro, Rocco, Geração Editorial, entre outras. É também desenhista e pintor.