O (fuzi)lamento do poeta
No dia do julgamento, meu infame destino me levou à praça onde os fuzis arrebentam com as transgressões dos poetas.
Os dias logo passaram, mal me preparei. Hoje amanheci. Fiz minha refeição sem gosto. Toquei duas músicas de Bob Dylan na minha harmônica imaginária. Dentro da minha cabeça de poeta, os versos de liberdade me angustiam. Querem se embrenhar por todo canto, por conta própria, e, inconsequentes, romper, à força do grito, as cadeias construídas pelas armas; e por mim.
Os tempos mudaram. Antes, os poetas eram levados a público para terem a homenagem de que eles eram merecedores. E mesmo depois de mortos, continuavam vivos na memória e nos livros. Hoje, fogueiras públicas incendeiam essas lembranças. Livros, revistas e discos. Tudo é pretexto para essas orgias. Há sempre um contexto no mais puro dos textos, há um contexto que o condena ao fogo. As bibliotecas vazias tornaram-se fábricas de armas; as livrarias, depósitos. As prensas das gráficas vomitam, sem intermitência, propaganda governamental. Aos poetas, uma bala. Nada mais. Uma bala certeira no peito. Não há pelotão. Apenas um fuzil do mais qualificado oficial, do mais respeitado pelotão do exército da Guarda Republicana. Um fuzil basta. Apenas um roçar um pouco menos delicado no gatilho para espantar esses pensamentos libertários que atormentam o poeta para o quinto dos infernos. A eficácia de uma bala ponto cinquenta desmistifica a ideia utópica de que canetas ou megafones podem romper barreiras totalitárias.
Quantos já vi cair em praça pública. Nessa última primavera, perdi a conta. Mês passado colocaram dez poetisas em fila indiana. Trazidas do Norte, estiveram presas desde o outono. Elas criaram um movimento. Apregoaram o aborto, o divórcio, a renúncia aos maridos. Conspiraram o retorno daqueles que há muito se escondem por trás das montanhas. Postas em celas separadas, mantiveram a esperança por todo o inverno. Eram de famílias respeitadas. Muitos esperavam a clemência do ditador, mas ela não veio. Serviu o exemplo de que até a própria carne pode ser cortada. As dez foram apresentadas no feriado da independência. Seus nomes gritados em microfone. Uma a uma. Enfileiradas por idade. Na frente, a mais nova chorava, grávida de sete meses. Escondido na plateia, o noivo segurava as lágrimas para si. No fim da fila, a velha poetisa de tantos livros e medalhas mostrava na face cadavérica um sorriso que transpassava as mais jovens e atingia em cheio o fuzilador. Era um sorriso de vitória. "Mas que vitória, senhora?", deu-me da plateia o ímpeto de perguntar. Houve o silêncio quando o capitão deu o brado, saldou a república e ordenou. Em coice, o fuzil tentou punir o oficial que atirou. Dele, a bala seguiu na contramão do sorriso da mais experiente e furou a todas no peito, uma a uma, e na velha senhora cravou. As dez que apregoavam a revolução contra as armas com cravos na mão caíram mortas. Viu-se naquela tarde, a força do fuzil. Mas nem quem atirou nem quem ordenou o fuzilamento sabia. É que escorria, mais do que sangue, um rio de lirismo em meio à brutalidade, se espalhando pela praça.
Poetas são suicidas em potencial. Se tem um vendaval, se tem paixão, eles estão lá. Obcecados pelo desejo. Eu é que sei. Quando criança, eu corria na tempestade para ver de perto as temidas elétricas árvores brancas enviadas pelos deuses. O som do trovão, as nuvens negras, em chuva e eu, criança, virando poeta. Querendo ser mais do que menino magro e tímido preso às porteiras do interior. Se eu pudesse, voaria para dentro das nuvens, para o cerne dos raios. Insistiria para ver os anjos, os demônios, marcaria consulta com os deuses. Sonhos infantis. E com esses sonhos, vivia em paz, me achando o grande sabedor de todas as coisas e de certa forma superior aos outros. Ao meu redor olhavam para o céu e não viam o céu. Viam uma abóboda azul manchada de branco. Vi o céu quando apontei meus olhos, sobretudo, para dentro de mim. O poeta tem a tola fantasia de se achar imortal. Deve ser para isso que servem os fuzilamentos: mostrar aos outros que os poetas sangram. Na minha infância, o sangue que escorria era o dos arranhões dos tombos de bicicleta, da cabidela das galinhas e dos panos sujos de minha mãe. Eu era poeta dos atos, poeta em essência. Via tudo através de uma câmera de lente exclusiva. Procurava o caminho mais estranho para chegar ao lugar comum, meu caminho único. Só vim a escrever no papel muito mais tarde. Um bilhete para a moça que sempre encontrava ao atravessar a ponte, essa foi a primeira poesia que escrevi. Olhei a mocinha de cabo a rabo. Descobri detalhes que nunca tinha percebido nas mulheres. Sonhava em claro, nas madrugadas, metaforizando no escuro do meu quarto, desenhando com estrelas o corpo dela. Peguei papel na venda, sentei e escrevi. Mas nas linhas bonitas que saíram, eu não estava ali. Não passei a limpo o rascunho das estrelas, nem os detalhes que percebi nela: belos dedos mindinhos tortos, delicada forma ligeira de morder os lábios quando passava por mim. Sobre essas coisas não escrevi. Medo de me expor. Medo de sua reação. Preferi escrever versos seguros, subornei os clássicos e, em paráfrases, poetizei o que tinha certeza de que ela ia gostar. Assim não houve risco. Ela rendeu-se ao primeiro verso. Fui perverso comigo, sei, mas que apaixonado quer correr o risco? Naquele poema calculado, descobri em mim um verso sombrio que satisfazia a todos. E logo estava cheio de encomenda de poesia. Para a igreja: batizado, catecismo, crisma, casamento, missa de corpo presente. O prefeito me incumbia de textos para as festas: inauguração, feriado de emancipação. Para os amigos, cartas de amor, principalmente. Todos, um dia, precisaram de uma carta de amor.
Quando a primeira bomba apontou no horizonte vi que ao contrário de muitos outros, as minhas palavras seriam meu salvo-conduto para o dia negro que nascia. Me alistei. Escalei a hierarquia militar tão rápido que, quando vi, estava lá em cima. General do Exército Republicano. Já se vão vinte e nove anos. A escolha esmerada da palavra me fez bem-vindo em todas as rodas, em todos os salões do Governo que se formava. Hoje, sob as ordens do ditador, controlo todo o Sul, e aqui na capital qualquer decisão deve passar por minha pessoa e só, em último caso, levo a ele.
No começo turbulento, protegi meus pais e os amigos que pude. Também usei meu poder para proteger jovens poetas incitados. Eles chegavam aos quartéis aos tantos. Nas torturas, bradavam versos enraivecidos: "Ah! Liberdade! O que ordenares farei!", "Até condenado à morte serei, meu amor!" Se eles soubessem o preço alto de rogar por mais forças a essa dama. Quem é o maior amante da liberdade senão o nosso ditador? Eu quase sempre conseguia uma maneira de livrá-los da pena capital, enviando-os a prisões distantes e até mesmo embarcando-os clandestinamente para o exterior. Outros, apesar de tudo, tinham o infame destino do fuzilamento. Com o congresso fechado e o supremo tribunal exonerado, as leis são feitas e executadas de maneira rápida. Portanto, todas as condenações sempre são legais como em qualquer democracia no mundo.
Foi num desses julgamentos que recebi a missão ingrata de apontar um fuzil para um poeta. E não foi um poeta qualquer, foi O Poeta. Por mais de uma década ele se escondeu nas montanhas do Norte, depois que voltou do exílio. Seus textos incitadores, esperados com ansiedade, se espalhavam pelo país em papéis mimeografados e emails. Atacavam em cheio a ordem e estarreciam a confiança da população. Sua prisão semanas atrás acalmou as preocupações do ditador, e sua condenação me empurra agora ao centro das atenções.
Com as medalhas alinhadas no uniforme, estou aqui. Tenho em pé ao meu lado o fuzil limpo e verificado, escuto solenemente os acordes do Hino Nacional. Esse som de trombetas dos trompetes sempre me deu a imagem de como os poetas mortos são saudados às portas do paraíso. Será que no paraíso dos poetas, os poetas terão finalmente o descanso? Os pensamentos libertinos finalmente aceitarão a trégua? As trombetas nacionais se encerram e no microfone o nome do grande poeta é anunciado. Sem algemas, com dois oficiais de cada lado, surge na praça o Poeta. Os longos cabelos castanhos encaracolados escorrem sobre a túnica de linho cru. Rugas na face imberbe. Não há sofrimento nem frustração. Passos retos, nenhuma vontade de fugir. Passa por mim como se eu não existisse. Na verdade, para ele sou apenas um infante, um de tantos que perderam na infância o dom da poesia. Segue ao seu posto. Encara o ditador por segundos e continua a caminhar. Em pé, aquém da parede, espera pela bala. Antes, três quartos de hora de um inflamado discurso do nosso ditador sobre Democracia. Na plateia, palmas correligionárias da multidão que sustenta ensandecida cartazes com fotos do ditador. O público passou toda a tarde trocando cartões postais de fuzilamentos passados. Agora se acotovelam pela melhor posição para ver o próximo ato que será feito com maestria. E o maestro dessa orquestração sou eu.
Meu nome e meus títulos são anunciados pelo mestre de cerimônias. Não posso me fazer de surdo. É certo que eu pagaria todos os meus ordenados que recebi até aqui para estar bem longe, engraxando sapatos de sargentos, aquartelado em alguma cidadezinha do interior. Pagaria tudo para não ser ovacionado nessa tarde. Para não ter meu nome chamado por essa torcida de sangue. Sou o centro das atenções como sempre sonhei, como sempre esperei por todos esses anos. Mas não era assim que eu queria que tudo terminasse. Não era desse lado que eu queria estar.
Levanto-me e caminho até a posição de fuzilador. Doze metros me separam do Poeta. Do púlpito, o ditador me saúda. Eu deveria estar honrado com esta saudação. O que eu gostaria mais? Sinceramente, por mim, preferiria estar do outro lado do cano. Gostaria de ser o Poeta a ser fuzilado, maiúsculo, como Ele é. Trocaria todas as medalhas que estoco em estojos finos por uma bala no peito. Uma única. Para derrubar a grande covardia que levo comigo no bolso oculto da alma. Ah, meu querido ditador! Essa bala poderia ser para você. Todos conhecem o notável virtuosismo quando o assunto são as armas. Todos conhecem a minha mira notável que difere alfinetes de agulhas. Me dê dois segundos, só dois segundos e vossa excelência já era. Um eterno ditador que por todo esse tempo caftinou a senhora Liberdade. Um ditador que, firmado em ombros de grandes libertários, aprisionou uma nação por três décadas. Dê-me uma bala e nada mais. Conduzirei ele, então, à terra dos perversos onde os versos do mais transgressor dos poetas não ousou penetrar. Uma bala entre os olhos, no centro da testa. Uma das milhares de balas fabricadas por meu pai na biblioteca desativada da minha cidade natal. O ditador caído será o fim dessa era. E depois dessa queda, o que se sucede a mim será mero detalhe. Detalhe que não me importa mais. A quem quero mentir, detalhes importam sim. O que eu mais quero agora não é acabar com esse governo. O que mais queria agora era estar junto àquela parede, olhando com esse sorriso de poeta para o público que me fuzila. Imaginar o que este poeta pensa, se pensa igual a mim.
Poetas não devem pensar em hierarquia, em saudações respeitosas a autoridades. Poetas não devem estar presos a soldos. Poetas não pensam em planos de aposentadoria. Poetas são suicidas em potencial. Agora, aqui, com arma em posição de tiro, relembro das poesias que não fiz, dos filmes que protagonizei mas nunca entraram em cartaz. Eu devia ter seguido as badaladas das reboladas das morenas, ter fugido, curtido o exílio, ter tentado o Nobel. Hoje seria conhecido pelas trilogias poéticas que, em milhões de tiragens, divulguei. Deixaria todos esses bárbaros e suas tiranias e viveria esquecendo minha terra, arremessando os jornais no lixo.
Aponto o fuzil para o Poeta. Na mira redonda, seu sorriso me insulta. Meu dedo coça no gatilho. E agora não há arrimo. Foi dada a ordem. Devo atirar. Mas não atiro. O dedo indicador rígido evita o gatilho. Repetem a ordem. Eu não atiro. Permaneço imóvel. Eu que sempre tive o dom da escolha das palavras, duas delas agora me travam a mente e o corpo: meia volta.
Retornar. Volver. O ditador e o público esperam.
Esperam sempre o melhor de mim, mas nunca uma surpresa. Sempre faço a coisa certa, da melhor maneira. Mas nunca surpreendo. Quando subornei os clássicos, firmei um pacto de segui-los, de copiá-los para sempre. E dos clássicos, não há mais surpresas. Como não há surpresas nos filmes reprisados sem fim nos canais de TV estatais. Nunca serei clássico, no máximo estamparei o mais valioso dos cartões postais: o do fuzilamento do Poeta. Com meu fuzil limpo e medalhas alinhadas no peito. Meia volta, volver. Baixo a arma, e a coloco na direção vertical apontada para o meu queixo. Murmúrios e rebuliços ao meu redor. Não espero uma nova ordem, atiro. Não lembro de que clássico copiei. Nenhum freio me veio. Apenas atirei. Assim devem ser os poetas, atirar primeiro e depois ver os estragos não calculados de sua ação.
Deixo minha pensão para os meus pais. Que minha mulher me compreenda e que perdoe por nunca ter feito a carta de amor que ela merecia. Sigo agora para as portas do paraíso dos poetas. Quem sabe esse meu último arrependimento me redima. Antes do amanhecer estarei lá, pedirei clemência ao porteiro. Que eu seja aceito junto aos poetas que sempre admirei: os poetas de sangue e os poetas de mente. E não importa se serei saudado com as mesmas honras dos profetas ou escarnecido como os ladrões de bicicletas.