“História do novo sobrenome” e a construção das identificações
Sigmund Freud, em seu texto O romance familiar dos neuróticos (1909), diz que “desprender-se da autoridade dos pais é uma das realizações mais necessárias e também mais dolorosas do indivíduo em crescimento”. Evoco essa citação para introduzir as minhas impressões sobre o romance História do novo sobrenome, o segundo volume da série napolitana criada pela escritora Elena Ferrante e publicada no Brasil pela editora Globo, em seu selo Biblioteca Azul.
Senti-me imensamente agraciado ao receber esse livro de presente e prontamente comecei a lê-lo, interrompendo sem hesitação todas as outras leituras que eu estava empreendendo até aquele momento. Em uma semana, devorei as quase quinhentas páginas que compõem a obra. E utilizo o termo “devorar” no sentido mais pulsional e intenso, com todo gozo inerente ao ato, com a ânsia de desbravar e vivenciar aquela história. Foi uma experiência que, uma vez iniciada, dificilmente foi possível interromper. Uma leitura fluida, mas nem por isso simplória. Nada de firulas ou tentativas de inovação com artifícios linguísticos sofisticados. O que há é uma trama repleta de força, emoção, reviravoltas e revelações, capaz de mobilizar no leitor os conflitos mais remotos. Na primeira página, imediatamente ressurgiu a tensão que havia ficado suspensa ao fim de A amiga genial, como se eu tivesse acabado de ler o volume inicial há poucos dias e não há cerca de um ano.
Mas o que tem a ver o tal do romance familiar dos neuróticos com o romance História do novo sobrenome? Desde o primeiro volume, é possível perceber a relação complicada da protagonista Lenu com a sua família. Filha de uma dona de casa e de um funcionário da prefeitura, a garota frequentemente sofre os efeitos da negligência afetiva e da violência doméstica que dominavam aquele contexto social. Lenu recorda que, quando tinha pouco mais de seis anos, lhe angustiava a sensação de que a mãe fazia de tudo para lhe mostrar que ela era supérflua em sua vida. Ademais, o corpo da mãe lhe causava repulsa e inquietude. Um corpo marcado pela falta, por uma perna que não funcionava direito, que mancava decrepitamente. Embora suas pernas funcionassem muito bem, Lenu vivia assombrada pelo risco de se tornar manca que nem a mãe. Por sua vez, o pai mostrava-se como um homenzinho fraco, uma figura debilmente presente, esmaecido perante aquela mãe dominadora e presunçosa. Esse drama persiste no segundo volume, como é claramente perceptível nesse questionamento de Lenu: “Será possível que os pais não morram nunca, que todo filho os carregue dentro de si inevitavelmente?”. Segundo Freud, para a criança pequena, os pais são inicialmente a única autoridade e a fonte de toda crença. Tornar-se como eles, ser grande como o pai ou a mãe, é o desejo mais intenso nessa época inicial da vida. Entretanto, com o progressivo desenvolvimento do indivíduo, torna-se inevitável que a criança perceba gradualmente as características reais dos pais, diferentes daquelas das figuras idealizadas no idílio da infância. Diante de referenciais familiares tão repletos de falhas, com quem Lenu vai poder se identificar? Numa tentativa de aplacar essa angústia e de se diferenciar daquelas pessoas que tanto lhe traziam mal-estar, ela dirige seu olhar e seu desejo para o meio exterior à família.
É interessante observar que a ameaça da identificação à figura materna tenha sido importante na ligação de Lenu à Lila, sua amiga de infância, que tinha pernas magérrimas, ligeiras, sempre em movimento. Era como se algo convencesse Lenu de que, se caminhasse sempre atrás da amiga, seguindo piamente sua marcha, por fim, o passo claudicante da mãe deixaria de persegui-la. Decidiu que deveria regular-se de acordo com aquela intrigante menina e nunca perdê-la de vista, ainda que a amiga genial a submetesse a abusos e hostilidades. Lila torna-se, então, o seu referencial feminino. Lenu quer ser igual a ela – inteligente, valente, desafiadora, promissora nos estudos. Concomitantemente, sobressai-se também a figura de Nino, aluno brilhante que estudava na mesma escola que as meninas e por quem Lenu se apaixonou platonicamente. Nino também se torna outro referencial para Lenu – modelo de beleza, polidez, intelectualidade e conduta masculina –, fazendo com que ela busque nele, seu objeto de desejo, aquilo que supostamente lhe falta (fenômeno que comumente acontece nos relacionamentos amorosos). Ao demitir os pais da posição de ideais, Lenu eleva Lila e Nino ao patamar de exemplos a se seguir. Essa intrincada rede de identificações e de incessantes movimentos de comparação e disputa entre os componentes dessa relação triangular vai permear toda a história.
O início de História do novo sobrenome é marcado pela continuação do casamento de Lila com Stefano, evento que resultou mais de interesses financeiros por parte de ambas as famílias que por um genuíno vínculo afetivo entre os jovens. É esse novo sobrenome de casada que vai conferir simbolicamente a Lila uma nova condição de vida. Porém, o mesmo sobrenome que lhe traz distinção e possibilidade de riqueza também lhe arremessa em terríficas situações de desrespeito e violência.
Esse novo estado de Lila despertou em Lenu raiva e incômodo, porque, em sua percepção, Lila demonstrava amor por Stefano, enquanto ela própria já não tinha esse amor nem por Nino nem pelos estudos. Na medida em que Lila se distanciava dos interesses intelectuais e se dissolvia na vida de mulher trabalhadora e casada, Lenu sofria com a desvalorização daquilo que ela julgava ser a sua salvação. Ora, se a incrível Lila não dá mais importância aos assuntos escolares, então isso não tem mais o menor valor. Instala-se, assim, um completo desinteresse de Lenu pelos estudos, ocasionando uma ruptura no ritmo bem-sucedido que ela vinha adquirindo até o momento, bem como a recrudescência do pavor de se tornar igual à mãe.
Posteriormente, mesmo casada e tendo abandonado a escola, Lila oferece um quarto em sua casa para Lenu estudar e compra os livros necessários para amiga. É como se Lila quisesse se realizar através de Lenu, uma vez que as circunstâncias do trabalho e do casamento oprimiam o seu próprio desejo de estudar. Dessa forma, Lenu retoma a sua vida estudantil e passa a ter momentos de proximidade com Nino, facilitados pela afinidade que ambos têm pelos estudos. Isso faz Lenu se sentir interessante e desejada pelo rapaz. Todavia, depois de muitas vicissitudes, acaba por descobrir que Lila e Nino estão tendo um romance, inclusive com relações sexuais. Tal fato causa um impacto devastador em Lenu. Sente-se excluída por aquele casal composto pelas pessoas que ela escolheu para serem seus referenciais. Apesar do baque, essa decepção permite que Lenu se dedique com mais afinco aos estudos, alcançando posições cada vez mais prósperas e de destaque, ingressando em outra escola, mudando de cidade, buscando se distanciar definitivamente daquele meio e daquelas pessoas que tanto lhe causaram sofrimento.
No entanto, o fantasma de Lila é onipresente e persistentemente perturbador. Por mais que Lenu tenha consciência disso e tente se afastar da amiga, repetidamente volta-se para ela. Mais e mais. Por que insistir em algo que é conhecidamente garantia de sofrimento? Lenu se mantém numa posição masoquista, submissa ao desejo e às vontades caprichosas de Lila, pressionada por uma força oculta que sempre a faz querer saber obsessivamente o que acontece com a amiga.
História do novo sobrenome, além de ser uma leitura agradável e comovente, é um livro interessante para se analisar os aspectos dos processos de luto dos referenciais familiares e da constituição das identificações ao longo da vida do sujeito. Processos necessários para que possamos construir o nosso “eu”, mas sem permitir que se estabeleçam identificações plenas, pois tentar ser exatamente igual a alguém é uma forma de morte, de anulação de si. Como um leitor que empatiza muito com uma personagem querida, torço ansiosamente para que Lenu escape desse engodo mortífero.
Que não tarde a chegar a História de quem vai e de quem fica!
Henrique Luz, psiquiatra e psicanalista.