CARÊNCIAS DO CONTEMPORÂNEO
Foi-se o tempo em que as pessoas se queriam bem sem pressa, sem o imperioso destino das decisões tomadas hoje com a exigência de retornos imediatos. É o sonho dos afetos se transformando no delírio dos afogados.
Sobre a velocidade do correr dos dias não pairam dúvidas: falar continua mais fácil do que se permitir ouvir, um texto de sete linhas postado em redes sociais é imediatamente rotulado de “textão” e a música lançada há dois anos se torna rapidamente um ajuntado qualquer de sons e grunhidos medievais.
Essa inominável urgência tem um preço: nos torna todos muito mais carentes, com a sensação de que precisamos ser mais gregários, mais unidos e sólidos. E sim, precisamos, mas a que preço? Tornar-se bucha de canhão para aliviar a carência do outro não me parece ser a forma mais sensata de nos apaziguarmos com nossas diversas tensões contemporâneas, num mundo que nos faz cada dia mais demandas, que exige de nós um nível de conexão que é quase equivalente a nunca, nunca estar desatento – desatenção, hoje em dia, pode parecer quase sinônimo de desapego à realidade, o que é quase um crime. Quer exemplos disso? Experimente não ter uma conta no Facebook, ou no Twitter, no Instagram, Snapchat. Experimente não ter o Whatsapp no seu celular. Como assim você não tem (espaço para o que for que te conecte ao mundo (virtual) com a avidez de um espermatozóide)?!
Ter e-mail e mandar SMS tornaram-se coisas de um tempo pré Big-bang. Mandar carta, então?! Nem os ultra-românticos, se é que eles não ficaram todos presos na década de 80, porque hoje em dia, pensar no romantismo através de cartas parece folclore.
E isso tudo por quê? Porque nossas faltas nos expõem em demasia, e por isso se tornou imperativo preenchê-las o quanto antes. Mostrar-se, parece, é como andar nu: o que deveria ser natural tornou-se atentado ao pudor.
A quase permanente ausência de tempo para nós mesmos continua a criar nossos vazios, nossos buracos, ocos, que inevitavelmente se transformam em demandas.
Fora o tempo que precisamos disponibilizar para os que estão em nossos ciclos. O que não deveria ser um problema acaba por se transformam em um, ao ganhar tons de cobrança. É o amigo cujo filho nasce e exige uma visita (antes mesmo que você sugira fazê-lo), a amiga que passa por uma cirurgia e diz “agora quero ver se você não me visita” (o que é uma cobrança não só de uma visita por esse motivo, como também uma ironia em relação a diversas visitas supostamente não feitas no passado).
Uma vida mais próxima da plenitude perpassa pelos amigos e pelos afetos que caminham conosco. Daí as manutenções de amizade serem imprescindíveis. Ser amigo de ocasião não conta: aquele que só está por perto nas farras ou quando ele mesmo precisa de colo, não pode ser caracterizado como tal, diante de uma vida que tem muito mais camadas do que as zonas superficiais e de interesse.
É preciso reavaliar o que estamos nos tornando, em nome do quê e em busca do quê. E de novo: a que custo para nossa vida física e mental? Desacelerar é uma meta a ser colocada em prática. Só assim poderemos minimizar nossas ansiedades e carências.
Então aquela pessoa que, se pudesse, passaria os domingos em casa, apenas descansando de uma semana atribulada, acaba se vendo indo, em quase todos eles, de um lugar para outro, sem trégua. Claro que isso ocorre porque ela se permite, mas é também muito mais do que isso: a cobrança exterior pode acabar incutindo no outro a culpa por uma negligência que não existe, senão nas palavras de quem faz exigências.
Aparentemente, estamos todos à flor da pele. Mas habitamos um invólucro facilmente destrutível. E se não barrarmos nossos próprios desesperos, chegaremos lá, ou quase. E o lá é sempre um lugar que nos é apontado, para que voltemos o nosso olhar. Cabe a nós olhar para onde está o lá que queremos ver.
Toda carga de afeto demandado advém da inexistência, no outro, de afetos que podem ter sido suprimidos, ou quase. Repare que o “quase”, usado tantas vezes nessa crônica propositalmente, é o antes do ser. É o medo antes do salto, a última casa antes da possibilidade real e empírica.
Como não elegemos nossas carências, que tornemos eletivas, por fim, a capacidade de olhar para o mundo com otimismo e esperança. Sem essas duas, ninguém percorre nem tempos nem momentos difíceis.