'Bifurcações', de Demetrios Galvão
Multifurcações transbordantes em atravessamentos poéticos
A poesia de Demetrios Galvão realiza uma escritura que fala/rasga a página tal qual um filho ao ventre. O seu livro bifurcações é marcado pela linguagem inventiva e seus muitos jogos, a exemplo das reiterações de frases e/ou palavras, das metáforas, do uso dos sinais de pontuações (dois pontos, pontos de exclamação, reticências, parênteses e travessão), dos enjambement (cavalgamento e/ou encadeamentos, no plano lógico da construção poética), das invenções de termos via palavras compostas (por exemplo, cinema-nosferatus, tecido-muscular-elástico, tecido-de-peixes, selo-carne, olhos-de-fogo, capim-santo, bondade-acesa, ciclone-devir, lua-cheia-de-poesia, nômade-heterodoxa, solidão-analgésico, anzol-espinha, noite-guardanapo, desconhecido-fugidio, celulose-branca, carta-salva-vidas, etc.), para potencializar/poetizar a língua.
Outro ponto que chama a minha atenção é o modo como alguns poemas foram construídos na página, a partir do uso do recuo da margem esquerda, há versos e títulos que mantêm um grande espacejamento (o que para nós é muito expressivo, porque gera um respiro maior na performance do leitor). Além disso, acreditamos que esse modo de construção na página indicie pensar a “página em branco” em consonância com as ideias de Mallarmé. Também verificamos que o poeta constrói diferentes diálogos intertextuais (seja através das epígrafes, seja por citações/referências) com poetas/escritores, tais como: Rubéns Zárate, Marcelino Freire, Floriano Martins, Herberto Helder, Vicente Huidobro, António Ramos Rosa, Ademir Assunção, Dylan Thomas. Ainda, vemos que este corpo-escritura se apresenta indiciando uma voz-experiência-corpórea-potência de vivo transbordar: “tenho um poema vivo/ que me tira o sono/ e me faz demasiado humano”, assim, a “palavra-mágica” que comparece em bifurcações está entre o “silêncio e o barulho”, o humano e o etéreo, o humano e o inumano, é neste local que: “a língua quando bem plantada / atinge veios profundos/ manancial voluptuoso de fabulações”, que o poeta busca a “sobrenatural beleza”. Por isso, o poeta em nome desta “busca” ou da “sobrenatural beleza” faz da escritura, no seu fazer poético, um exercício de alfabeto que é gestado na pele que arde de “alumbramento” (com uma palavra-mágica adornando os olhos) nas formas-poemas-peles vivos pelo “esticar do mundo” (ainda é possível esticar o mundo com a palavra poética). Além disso, seus poemas nos inquieta pelas “imagens profundas”, quiçá porque o poeta consegue fotografar “grafando” “o absurdo para não dizer nada” dizendo.
O livro é um jorro de encantamentos diversos, numa topografia pulsante e visceral, em que tudo é vivo e vai expandindo o mundo, para a construção de uma poesia que pode, em determinados momentos, trazer à tona essa palavra-mágica-xamânica num mundo também expandido (‘esticar o mundo’), para romper com as dualidades/dicotomias/disjunções e ser, ao mesmo tempo, a pesca e o pescado, a colheita e o coletor, a constelação de imagens de caminhos mais que bi-furcados, são construções multiplicadas em multifurcações. Porém, se estamos nos “bifurcando” é porque entramos em “realidades alternativas”, entramos nos desvios e/ou nas deformações do “real”, ou ainda, no poder mágico, no “alumbramento” que as palavras têm sobre o papel e o leitor.
Assim, saímos da esfera cotidiana para realizarmos uma invasão na polivalência dos signos estéticos, captando-os por mais de uma direção, pois estamos sempre no paradoxo que nos configura “demasiado humano”, nos condicionando às mutações emocionais ou, então, aos simultaneísmos experienciados sensivelmente pelo prazer e pela coabitação das linguagens, pois “o texto de prazer é Babel feliz” (Barthes). Destaco os seguintes poemas na obra: “os centauros também amam”, “céu de porcelana”, “para uma criatura encantada vol. 6”, “cosmologia invertebrada”, “domador de infernos” e “matadouro”, em que sobressaem a imaginação plástica e difluente desdobradas da mente do poeta para desencadear uma série de transfigurações complexas e de sínteses, em que se situam ambiguidades e uso de metáforas para nos tencionar e nos distorcer ao máximo. Sem falar na apresentação feita pelo poeta Afonso Henriques Neto, que é linda e de excelente nível textual/contextual, de um olhar apurado para falar do fazer do poeta.
Ao ler as bifurcações de Galvão, fiz uma relação com uma obra-projeto experimental de videoarte, do artista norte-americano Stan Van DerBeek, que exibe imagens simultâneas de filmes na cúpula do planetário do Rio de Janeiro, no mostra ArtRio (2015). Afinal, por que fiz esta relação? Porque tanto o projeto quanto o livro apresentam inúmeras imagens (que, às vezes, nos chegam caóticas pelo excesso de signos) e nos propõem múltiplas conexões, a partir de o entrelaçamento de imagens (sons) e sensações. As duas obras conseguiram desencadear em mim uma vertiginosa sensação, ao mesmo tempo, uma Babel “verbivocovisual” feliz.
No “céu de porcelana” de bifurcações que é, ao mesmo tempo, delicadeza e surpresa pelas pinceladas gestuais feitas à palavras (para criaturas “encantadas”), há uma “cosmologia invertebrada” de palavras-memória-sagradas-profanas-esponjosas-líquidas criando, movimentando e dando luz a novos mundos em esferas sempre gasosas, em virtude das indeterminâncias e imprevisibilidades.
*Nota: BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. (p. 08)