30 de abril de 2016

Diego Moraes e a poesia em "Belchior"

"Meu coração é um bar vazio tocando Belchior" (Penalux, 2016) é um livro inteligente em todos os aspectos: pelo texto em si, naturalmente, pela arte (na capa o coração anatômico tem uma antena de rádio) e na edição primorosa, que dividu os textos em três blocos: "Ondas médias", "Ondas longas" e "Ondas cursos", dependendo do próprio tamanho de cada poema em prosa, conto ou aforismo.

Diego Morares é um escritor manauara que começa a ganhar o Brasil. Depois de publicar em editoras pequenas e até em Portugal, foi convidado pela Penalux para editar seu "Belchior".

O livro causa impressões diversas: extremo cuidado versus relaxamento, cheiro de flores frescas versus o de esgoto e urina, expansão versus retração etc. É um livro que veio do boteco da esquina, aquele onde só os pinguços bebem e onde traficantes fazem seu ponto.

Diego, não por este livro, mas pela sua obra, inaugura um jeito diferente de fazer poesia. O que mais se tem usado fazer atualmente, a metapoesia, é um recurso caro ao poeta e recorrente em toda o livro -- mas Diego não o faz de forma gratuita nem manjado, no entanto. Lendo Diego, a impressão que se tem é de que não poderia ser de outro jeito -- a metalinguagem bem-sucedida agradece, e dá uma constante sensação de frescor a cada texto, como ele se fosse fazendo na medida em que lê cada um.

É o caso, em "Ondas médias", de "Indumentário do vazio":

"Sair da festa antes da hora
Falar para alguém fútil
Preocupado mais com
O corpo e com a indumentária
Que não quer papo
Que a poesia me espera silenciosamente
Dentro do quarto onde
Pago o aluguel com a solidão".

Outro bom exemplo de metalinguagem está em "Anfíbio": a personagem pede para morrer com glória, mas o autor o mata de velhice. Há algumas citações no filvro, que vão desde Rimbaud até Eduardo Lacerda. Para ilustrar o capítulo "Ondas longas", o texto abaixo é uma ode ao poeta e à matéria de poesia. É também um daqueles textos de Diego que confunde pela verossimilhança -- parece haver ali fatos reais do autor, que, no entanto, causa ainda maior prazer na leitura.

"Porte de Arma"

"Escrevo porque não tenho porte de arma de fogo. Escrevo porque não ganhei um autorama no natal de 1992. Escrevo porque o Silvio Santos não leu as cartas que mandei para o programa Porta da Esperança. Já criei centenas de definições para literatura e descobri que escrever é apenas uma forma de domesticar o animal que mora no zoológico interno. Fazer carinho no beijo raivoso que rosna dentro da gente.Uma necessidade. Uma doença sem nome. E que a solidão é o Posto Ipiranga para o abastecimento do tanque lírico. Que solidão é o tempo para ideias surgirem como temporais que destelham casas. Não tenho horário para escrever. Sou um eterno combatente do tédio. Estou sempre estancando um vazio ruminando ideias. Sempre escrevendo no parquinho do cérebro. Qualquer mentira escutada na rua é motivo para confabular poemas, contos e roteiros. Impossível não pensar em fazer literatura num mundo que só te oferece mentiras. A saída é sempre criar mentiras com asas. Nunca fui de ter crises criativas, os socos que a vida nos dá na cara é sempre inspiração. Literatura é cão que se alimenta da ração das tragédias alheias. Bem-aventurado aquele que desconta as decepções da vida escrevendo versos. Dia desses atravessei o porto de Manaus e vi crianças brincando numa canoa furada no Rio Negro. Uma hora a canoa sumiu nas águas e pensei: 'Escrever é apenas uma forma de naufragar lentamente. Literatura é naufrágio e o barco é você mesmo'. As crianças choraram e eu fui para o bar cheio de lindezas para um conto. O escritor é um náufrago pedindo socorro. O lance é seguir em frente estacionando catástrofes e transformando em poesia."

Em "Ondas Curtas" o papo é bem direto, mas não menos poético. Aliás, parece que quanto mais conciso, mais lírico é o texto. Como em "Durex": "Você é um livro de poesia antigo que comprei num sebo e colei todo com durex e as baratinhas roeram na estante da sala".

A propósito, as situações românticas na obra sempre são razões para dar vazão à poesia: isso permeia o livro todo, bem como o sarcasmo, como em "Concreto": "Ontem foi o Dia dos Namorados. mas eu vi um bêbado abraçando e beijando um poste. O amor é concreto".

O Belchior da capa é mencionado no conto "O lirismo é o único Deus em que acredito":

"[...]

Digo para ele cair fora. Que estou querendo ficar na minha escutando Belchior na máquina jukebox. [...]".
O submundo das putas e dos traficantes também compõe o livro, como em "Magal" e "Coração Selvagem".

Em suma, "Meu coração é um bar vazio tocando Belchior" é um livro para se ler com prazer e reler com afã redobrado. Um ótimo item da estante da editora Penalux.