17 de abril de 2016

Visita da Alteridade

Sinal vermelho, pés pausados. Fim do sossego! Eles logo voltam a se estender em longos passos endereçados, desprezando a calma que é o fim de tarde. Correm atrás do compromisso com a realidade: amores, casamento, família, sempre com a imensa responsabilidade de sobreviver.

Volto pra casa nesse ritmo do cotidiano, da pressa, do trabalho, vibrante. Sozinho – e satisfeito com isso –, sento à mesa e bebo café como quem medita. Fazendo culto à neutralidade precisa do seu estilo. Nesse intervalo da vida, adoro sua imagem e transcendo junto ao seu perfume rude e exato. É quando chego a poucos goles da paz. Bebo-o quente como quem bebe a madrugada fria, tranquila. Café é harmonia por fora e por dentro, com um gosto de cautela, notável concentração. Quero ser assim, como o café, estrito, assexuado, quero ser solitário mas suficiente. Como bem definiu Quintana: “o café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo que não permite acompanhante sólido”. Quero beber da minha prudência, me embriagar de mim, da minha essência. Quero bastar-me!

E assim, meus pensamentos cinematográficos me colocam em cartaz, estou a estrelar para mim mesmo, eu-plateia. Minha divagação está no auge, mas algo me sensibiliza ao plano material perpassando por minhas pernas. Eu, no entanto, continuo protagonista a atuar nos palcos das minhas idealizações. Contudo, a interrupção é insistente, se arrasta, se esfrega contra mim, a favor de mim, e, aos poucos, distrai minha atenção. Desloco minha visão da projeção do eu até a paisagem de um gato branco que me sublinha os pés com carícias grosseiramente meticulosas. Um carinho que se encosta em mim brutalmente, um atropelamento de corpos. Ele empurra meus pés como quem empurra o amor.

 

Mayara Sena, 19 anos, contadora de histórias e atriz da companhia Trem das Artes. Graduanda em letras – língua portuguesa, UFPA, nasceu e mora em Castanhal, Pará.