A inveja
Ficou um silêncio arrasador. Não, foi pior, foi um silêncio constrangedor. Não tem nada mais angustiante que um silêncio assim. Depois do dia que eu tive, juro que eu não merecia isso. Nem eu, nem mulher nenhuma merece um troço desses. Trabalhei que nem uma burra naquele banco. Burra sim, porque se eu tivesse um pouco só de inteligência tinha escolhido outra profissão ou casado com algum rico pra virar dondoca. Mas não, eu tinha que me apaixonar pelo Tuca. Todo mundo sabia que ele tinha esse jeito meio distraído, e eu, boba, tinha que me encantar por ele. A porcaria do caixa não fechava de jeito nenhum e por causa disso acabai perdendo o ônibus. Resultado: tive que pegar duas conduções lotadas pra voltar pra casa e ainda aquela garoa infernal do ponto até em casa. Pra completar o meu papel de otária, resolvi fazer um jantarzinho especial pro Tuca. Nem sei porque eu tenho essas ideias de jerico no meio da semana, depois de um dia como o de hoje. Cismei que a gente precisava de uma comidinha diferente e lá fui eu fazer o macarrão que ele gosta. Ele ficou feliz. Quem não ficaria? Uma pessoa que faz as suas vontades. Até eu que sou mais boba! Tá certo que ele não pediu nada, eu fiz porque acho que o papel de tonta está tatuado na minha testa! Ele ficou feliz de verdade. Percebi isso. Toda vez que ele fica feliz de surpresa vem e me dá aquele beijo no pescoço e fala uma besteirinha qualquer. Eu não devia cair nessa. Acaba tudo sobrando pra mim. Até que o jantar estava gostoso mesmo. Até que a gente conseguiu colocar a conversa em dia. Até que estava tudo bem...até que...sou uma idiota mesmo! Quando ele falou que ia ler no quarto eu devia ter falado “Vai sim, amor.”, mas não, eu falei “Vamos ver um pouco de TV juntos.” Foi a merda da vez. Depois do dia que eu tive, do caixa não ter fechado, de ter perdido o ônibus, de ter que pegar duas conduções, chegar em casa molhada da garoa maldita, de fazer um jantar cheio de frescura, lavar a louça (tá certo que o Tuca deu uma força), ajeitar a cozinha, quando eu finalmente entro na sala e me ajeito pra do lado dele pra gente curtir uma TV juntos, na tela surge... nem sei como falar... surge a bunda da atriz. Ficou um silêncio arrasador. Não, ficou um silêncio constrangedor. O Tuca, safado, deu uma suspirada, tenho certeza. Eu estava com o ouvido no peito dele e tenho certeza que ele suspirou. Tentou suspirar bem baixinho, mas suspirou. Eu odiei aquela bunda majestosa naquele momento. Odiei aquela bunda e todas as outras que virão no carnaval e nessas festas que a bunda impera! Todas magnânimas e imunes à celulite e outras imperfeições. Desejei uma lei que impedisse que bundas perfeitas fossem expostas, ridicularizando a maioria da população, a extensa horda de mulheres que possuem bundas brancas, adiposas e aprisionadas na sua vergonha de terem nascido chinfrins num país que as oportunidades são para os que têm bunda, sabem sambar ou jogar futebol. Tá, sambar é uma manifestação cultural, não conta. Futebol precisa de talento, treino. Mas e a bunda? Aquela bunda estampada na tela era uma afronta! Tenho certeza que o Tuca tá com os olhos brilhando, não preciso nem ver pra saber. E depois disso como eu vou transar com ele? Na certa vai ficar imaginando a bunda da bonitona no lugar da minha bunda ridícula! Odeio mulheres bundudas!! Odeio! Imagino o que ele deve estar pensando. Depois vai fingir que nem reparou direito. Sonso. Só suspirou porque sabia que eu ia falar muito. Queria muito mesmo uma lei que proibisse que as mulheres mostrassem suas bundas na TV. Melhor, queria muito era ver essas bundas depois de velhas, murchas e caídas, porque o tempo é implacável. Queria ver essas bundas sem o photoshop. Todas elas têm um retoque final, um personal trainer, alimentação adequada. Ah, se elas tivessem que ficar com a bunda amassada, sentadas durante oito horas num banco atendendo clientes que nem eu, tenho certeza que não iam ter esses monumentos. Será que o Tuca não vai ter coragem de falar nada? Será que vai ficar fazendo papel de sonso? Vou ser mais eu. Quero ver só até onde vai essa cara de pau dele, disfarçando desse jeito.
- Bonita a bunda da moça, né Tuca?
Silêncio. Que raiva! Como ele é sonso! Vai ver nem sabe o que dizer.
- Tuca?
Mais um suspiro. Um cutucão.
- Tuca!
O rapaz abriu os olhos assustado.
- Oi? O que foi? Acho que eu cochilei...
Lindo! Esse é o meu Tuca! Nem viu nada, tadinho. Deve ter chegado cansado demais. É por isso que eu amo tanto esse jeito bobo dele.
- Vamos dormir na cama, Tuca? Não está passando mesmo nada de interessante na TV...