A via férrea íntima
A cada leitura que realizo, percebo que a construção de um livro não é tarefa simples, como muitos escritores acreditam que seja. Gerar esse objeto, que se sobreporá aos olhos de outrem para receber diversas críticas ou elogios, mesmo que esse não seja objetivo primevo de alguns, e que contribui para a formação da cultura de um povo, é realmente um trabalho hercúleo.
Em conversas com amigos escritores, que idealizam os seus livros, os mais preocupados com a estrutura são os que mais me chamam atenção, e que, por coincidência, tem um desenvolvimento maior em seu criar com as palavras. Assim, é impossível não destacar este ponto quando me deparo com alguma obra em que é perceptível a preocupação de uma obra coesa e coerente que foi pensada para se configurar como tal e para que o leitor, quando a tiver em mãos, perceba isso, pois tudo saltar-lhe-á aos olhos.
A dificuldade em não deixar espaços vazios em romances, principalmente aqueles de ficção científica, é enorme, pois o autor tem de estar atento a tudo que inventa e que narra, mas o que mói a minha alma é quando observo que um determinado poeta propõe seu livro não como um amontoado de textos esquecidos, como se fosse um aglomerado de livros sobre a escrivaninha, mas como algo pensado e gerado, que, mesmo com certa maturação lenta, não deixa de ter também a presença do desprendimento.
Desprendimento esse que é difícil quando nos embrenhamos em uma linha de raciocínio que fixa cada vez mais forte em nossa mente, em nosso pensar, em nossa criação. Parece que ao iniciar um livro que segue por um determinado caminho de ideias, que vão nos guiando, como se fossem elas um ser só, como uma locomotiva, faz com que desbravemos espaços antes obscuros em nossos seres, que até então desconhecemos. É como se a leitura, sendo nosso guia-mestre para um autodescobrimento, fosse nos ligando de uma ponta a outra, ao passo que vamos nos descobrindo ‘outro’ como se fôssemos uma via férrea. E isso, penso, é o que pode ser visto no livro de Mário Alex Rosa, poeta mineiro, Via Férrea, publicado em 2013, pela, agora extinta, Cosac Naify.
Quando li a epígrafe de Kafka
A partir de certo ponto não há mais
possibilidade de retorno.
É exatamente esse o ponto que
devemos alcançar.
Vi que a leitura do livro poderia ser o sinal verde que esperava para enveredar na leitura, é possível notar certa preocupação quanto ao eu nas palavras do escritor em epígrafe. Assim, já de início, no segundo poema, intitulado Bicho II, uma estrofe afirma e questiona:
Como encarar a tarde
se confronto, cara a cara,
a sombra que retarda
o sumiço do segundo.
Esse bicho que se faz presente, assim como o eu, é o reflexo de alguém, aquele que todos nós conhecemos bem, usufruto que fazemos do nosso duplo interior, entre as tardes, noites e manhãs que direcionam uma primeira possível parte do texto, que também fala daquela eterna busca de algo que não sabemos o que é.
Talvez seja aí que a epígrafe de Kafka comece a fazer sentido, mesmo que não seja necessário buscar algum. Tendo chegado lá, através dessa busca, a este confronto interno, de que adiantaria, portanto, haver a possibilidade do retorno? Não é sempre mais interessante olhar para a paisagem que surge pela janela da locomotiva do que caminhar sob a fumaça que é deixada pra trás?
No risco da tarde, a primeira linha pouco se via.
Tudo era parte e tudo se espatifava.
Neutro de si, você cruzava outra via, férrea.
Enquanto a palavra dava um coice.
Afastar-se da luz gera abismos.
Afastar-se de si não muda a sombra:
fica-se à deriva.
(in deriva)
Os poemas presentes em Via férrea, de repente, no decorrer da leitura, parecem estar realmente ‘engatados’, como afirma Armando Freitas Filho na orelha do livro. Quando notamos que dias e noites vão perpassando as reflexões que tomam esse eu, ou esses eus, é que entendemos a possível criação de uma Via férrea, que não se cria forçosamente, pelo contrário, ela já estava intrínseca a nós, contudo parece que só agora, pela manhã, com a aurora, é que podemos descobri-la e, talvez, aproveitá-la.
Mas esse caminhar, possivelmente veloz, ansioso e angustiante, não contribui para que a busca pelo objetivo se cumpra, principalmente quando a busca se faz interior e quando não se tem o que se ter, não se tem o que se quer. Não chegar a um ponto de chegada, não saber onde estamos indo não é algo fácil de aceitar e de sentir, todos sabemos. Sendo assim, este algo se faz presente em alguns dos poemas, como n’O lugar que se habita, para que possamos observar que aquém do reflexo da janela que possibilita o exterior há também o outro eu, há o eu em mim:
Na falta de mim
invento outro, muito mais violento,
como aquele no espelho partido
de mim enquanto pensava na primeira pessoa.
Dessa maneira, entre a locomotiva interna e o olhar exterior, se constrói um breve livro, mas com uma densidade permeada pelas palavras que estão entre a solidão das tardes e do eu, entre as amarguras do silêncio da boca e da natureza.
Também é importante lembrar que toda construção tem seus defeitos, as curvas que a via realiza, seus entrecruzamentos podem conter perigos que deixamos para trás, uma vez que não a construímos. Em Via férrea, a presença do amor carrega consigo semânticas variadas e parece que sua presença em vários poemas se faz necessária para que possamos entender um pouco mais esse eu que parece não se possuir diante da perplexidade dessa busca em constante acontecimento. Um poema como inefável pode contribuir para que desistamos, talvez, da longa jornada:
O amor é o que está na bateia, bate, bate,
e o pouco que sobra, fica batendo.
Você diz: “Esse amor, não entendo”.
Mas o amor prega peças na gente.
Por exemplo: um amor-corrente.
Esse é inefável, no entanto amável.
Amor esse que rodeia a todo ser humano e a natureza a sua volta. A desistência pode vir do seu uso, da ideia que temos dele ou de como o entendemos. Mas como continuar quando os percalços sentimentais surgem e embaçam a vista através do olhar e da janela?
Por essas questões que se criam a ler um livro de poesia, por exemplo, afirmo que pensar um livro não é coisa simples. Via férrea pode ser uma ótima demonstração do quanto é necessário criar, escrever, repensar o que se tem inicialmente para a realização de um livro. Pois naquelas palavras não deverão estar apenas ideias soltas, o leitor que está habituado a lugares comuns, algumas vezes, deseja o interminável, a construção que busca uma razão, se é que ela existe e se faz necessária. Ele o sabe que é quase impossível, mas mesmo assim quer acreditar que alguém, em algum lugar, conseguiu atingir o seu lugar de chegada, mesmo que tenha passados infindos anos.
Assim, ao virar a última página do livro de Mário Alex Rosa, parece fazer sentido, num primeiro instante, buscarmos a nossa via férrea, entender seu funcionamento. E é interessante perguntarmos se desejamos ir juntos com essa locomotiva, esse outro eu, uma vez que não haverá volta. Ficaremos à deriva ou desejamos chegar em algum lugar? Cada qual que construa a sua via férrea.