A pasta
Estou atrasado. Com um relógio suíço caro como este, espanta-me estar atrasado, mas simplesmente não ouvi meu despertador tocar. Parece-me que algo não está funcionando: se não for o despertador, sou eu, mesmo.
Até que enfim consegui sair daquele metrô lotado. E o medo de perder o trabalho que carrego na pasta, esse trabalho que tanto me custou, dois anos de esforços, e que com certeza garantirá minha promoção? Seguro muito bem esta pasta, a minha vida profissional está nela. E o meu trabalho é tudo para mim. Odeio gente que não trabalha direito, prevarica, procrastina. E tem, viu? Quanta gente incompetente. Ainda bem que o diretor percebeu meu potencial, e graças a deus não parece ter percebido que sou um pouco autoritário, não gosto muito de trabalhar em grupo.
Nossa, o relógio de pulso parou! Como pode ser isso? É um relógio suíço! Eu...
... caí? Como assim? Acho que tropecei num buraco. E a pasta? A pasta, começo a gritar! A pasta! Uma senhora bastante idosa e muito gentil me diz que está com ela, que eu me acalme, que eu tente me levantar. Mas não me acalmo e continuo pedindo pela pasta. Essa velha não tem como se defender se um larápio tentar levar a pasta. Vem um homem alto, negro, oferecendo ajuda. Recuso.
Ele caiu. Deve ter batido a cabeça. Não, ele está consciente. Chama o Samu! Chama aí, você tem celular. Tá sem crédito. Para o Samu é de graça. Ele está esquisito. Continua parado naquela postura estranha. Nem se deita, nem se levanta, e grita “a pasta” a todo momento. Acho melhor levar ele para um hospício.
Nossa, o Samu. Mas por quê? Tem alguém acidentado? É bom ver as coisas de camarote. Eu estou aqui, meio deitado de lado, apoiado num braço só. Eu posso, daqui, ver tudo o que o Samu vai fazer. Quem, eu? Não, senhor, estou ótimo. Não, hospital não, tenho uma reunião importante. A pasta! Está tudo na pasta. Não, não quero ir para o pronto-socorro. Parem, não quero que me ajudem a levantar. Vou ficar aqui. Só quero a porra da minha pasta. O nível? Manter o nível? Que nível? Estão com a minha pasta, a puta da minha pasta. Devolve aqui, ó velha! Caramba, ela se ofendeu, está indo embora. E está levando a pasta. Não, já disse que estou bem e não preciso de cuidados médicos. Não bati a cabeça. O quê? Vocês estão tentando me levantar? Merda, conseguiram. Agora dou uma desculpa, um passa-fora, e eles vão embora. Têm mais o que fazer, principalmente numa metrópole caótica quanto esta.
E agora, corro atrás da velha? Que horas são? Ah, é, é só olhar no celular. Sem bateria? Não acredito que deixei isso acontecer. Eu vou seguir a velha. Mas cadê a velha? Aqui tem uma multidão, nunca vou achar a velha. Tá bom, então, todo o mundo quer que eu me foda. Pois o mundo é que se foda sem mim. Ah, que delícia, voltar exatamente no ponto em que parei. Deitado, meio de lado, braço apoiando. Ponho a mão para segurar a cabeça.
Passam muitos transeuntes por aqui. Pouquíssimos perguntam-me se estou bem. Quando isso acontece, digo que sou ator e que estou fazendo uma performance. Alguns, bondosos, me atiram moedas. Meu Deus, moedas, dinheiro, a pasta, a reunião, a promoção! Tudo perdido. E esta posição já está me incomodando. Deve fazer umas três horas que estou aqui, o sol está muito quente para usar paletó e gravata. Tiro tudo, até a camisa de linho, para tomar sol. Bom, eu acho que não vai ter mal nenhum se eu mudar de posição. Minhas costas doem. Pronto, deitado de costas é bem melhor, eu estou deitado de costas no chão perto do Vale do Anhangabaú (da felicidade, como diria o Wisnik). Agora o dinheiro está sendo deixado sobre a minha roupa, embora eu perceba a perplexidade deles ao verem uma gravata entre as minhas coisas. Um homem de uns 60 anos veio me perguntar por que eu estava mendigando. Seria para novos sapatos?, disse irônico. Não, meus sapatos são novos porque preciso estar apresentável. Apresentável? É, no escritório. Aliás, eu não sou mendigo. Passa fora, preciso pensar. Vou chamar o Samu, vão levar você para um hospital. Mas para quê, não vê que estou mendigando? Mas você acabou de dizer que não estava. Pois é, a velha me roubou a pasta. Que pasta? Deixa pra lá. Não quero mais a pasta. O senhor pode ir embora, estou muito bem. De excelente humor, aliás. Vá sem remorso. O senhor está falando com um homem são.
Até que enfim me livrei daquele velho. Credo, como detesto gente velha! Eu, com apenas 26 anos, dois mestrados e um MBA, já sou o diretor de uma empresa importante. Eu mostrei na reunião todo o trabalho de dois anos e fui promovido imediatamente. Aliás, acho que não, não tenho certeza. Se eu estou deitado aqui, fritando ao sol de 40 graus, como posso ter ido lá e apresentado o projeto? E a velha? Minha pasta! Minha pasta! Minha pasta!