"O que não existe mais", de Krishna Monteiro
Krishna Monteiro, sem sombra de dúvidas, tem tato com as palavras. Todas são precisamente escolhidas, não há nada fora do lugar. Um leitor experiente perceberá isso antes que chegue ao final do primeiro conto, de sete que estão presentes no livro, publicado pela Tordesilhas, O que não existe mais (2015).
Noemi Jaffe, no breve texto introdutório, afirma que a linguagem de Krishna é como algo que não existe mais, ela promove a “força do invisível” com suas palavras e construções que partem de faltas. Em todos os textos, é perceptível que a ideia do vazio se faz presente. Desde o primeiro conto, em que o filho é seguido pelo pai, pela sua forma assombrosa, vindo do além-morte, até aquele conto em que um gato visualiza os últimos momentos de vida de sua dona. Para ser mais preciso, percebe-se que há um objetivo na obra do autor paranaense.
Sento-me a teus pés como sempre fiz. Sabendo-me ali, tu me miras de relance, por cima das páginas que lês. Nossos olhares fixam-se um no outro, cheios de subtendidos. E, ao contemplar o caimento de teu terno bege, o brilho espelhado de teus sapatos de verniz, a leveza e o equilíbrio da bengala que manténs à tua direita, junto de ti, penso que talvez seja eu o morto e sejas tu o vivo, que eu não mais exista e tu sim, e que, como morto que sou, devo cobrir-me de terra, adormecer, para finalmente estar longe de ti.
Há, na obra de Monteiro, uma percepção aguda do que nos rodeia. Um escritor, certamente, precisa ter isso, mas o que se vê nos contos, principalmente no segundo conto, Quando dormires, cantarei, é que existe uma delicadeza no que se conta que não se encontra em qualquer escritor. O adjetivo aqui surge simplesmente por não conseguir dizer de outra maneira o que senti ao ler o livro O que não existe mais. Um leitor que fizer uma leitura rápida acabará por se questionar se está a ler correto, quando se dá conta de que um galo é o personagem principal, e que está ele dentro de um cercado, arrodeado de mãos que o incitam sob uma armadura horrível em direção à morte, em direção ao duplo.
Duplo este que não está significado apenas em seu inimigo, mas que está em si, uma vez que enquanto ergue as esporas rememora cenas que viveu. Enquanto relembra momentos de sua vida, ficamos tendo conhecimento dos golpes que são desferidos, como atinge e como é atingido, quem era Conceição e o que o levou até aquele momento. O que há em meio à disputa? Uma profusão de sentimentos que o galo emana, tanto que se mistura com seu duplo. O sangue embaça não apenas os olhos, mas a vida. Seu inimigo, como pensam os outros seres que apostam, gritam e torcem para que um dos dois lutadores morra, não é aquele que se percebe a sua frente, mas aqueles que lhe ‘criaram’, chegou a pensar que tinha uma vida normal e tranquila até o ponto em que não se entende como um lutador nato.
À sua frente, o inimigo exausto, exaurido. Opacas são as cores que colorem o mundo, a visão se embaça, e por um momento ele julga lutar contra dois ou três. Mas percebe que agora o duplo, em vez de atacar, em cima dele cai e se apoia como numa bengala, e que sobre o corpo do outro ele também se deixa desfalecer, ambos rodando em torno de um eixo imaginário, pisando e se desfazendo em uma poça feita da essência deles mesmos.
Esse duplo também pode ser percebido em outros contos do livro, uma vez que a memória se torna um tema recorrente, presente em vários dos personagens. E isso se torna o catalisador para que as experiências de busca para se conhecer e entender o mundo a sua volta nos personagens possam dialogar com o vazio existencial que eles possuem.
A obra de Krishna Monteiro, O que não existe mais, é uma ótima demonstração de como se construir narrativas bem escritas, mas que, talvez, por prezar tanto por isso acaba deixando a catarse de lado. As narrativas criadas são quase todas possuidoras de um peso que busca emocionar o leitor sem ser clichê, contudo talvez a busca pela técnica acabe deixando de lado o que poderia contribuir para que o leitor possa ir até o final do livro.