A última carta de Ted Hughes
A primeira vez que encontrei qualquer coisa de Ted Hughes foi através de “Lovesong”. E como é possível se livrar do fascínio biográfico de um dos casais mais famosos da literatura mundial? É irrealizável não acreditar que um dos poemas de maior beleza de Hughes, “Lovesong” não tenha tido como objeto o turbulento caso de amor com Sylvia Plath. A sedução, aos meus olhos, vem precisamente da forma áspera com a qual ele se utiliza do tema que é arriscado desembocar no sentimentalismo se confiado em mãos erradas. Ted Hughes fala do contato físico, do sexo, desejando que, com a força dedicada por ele em agarrar o presente, o futuro se cesse. É exatamente essa completa falta de sentimentalismo que faz de Hughes o artista sedutor que foi. Um amor sem futuro é o mais completo que ele pode vislumbrar porque é por inteiro, urgente.
Resgatado na British Library e publicado em primeira mão pelo jornalista Melvyn Bragg na revista The Statesman, em 2010, doze anos após a morte do autor, “A última carta”, de Hughes, foi traduzida irretocavelmente para o português por Marcus Salgado.
Arrebatador. Não me vem uma palavra que envolva mais o poema original “Last letter”, de Edward James Hughes, que essa.
Feito uma avalanche de maus momentos e assuntos mal resolvidos, o ritmo dos versos são erráticos e intensos. São de uma paixão, de um pesar inquestionáveis. Uma espécie de mente em desalinho grafada pelas mãos experientes de um dos maiores poetas ingleses e que, mesmo tendo sido lido e discutido ampla e internacionalmente, estabeleceu-se à margem de Sylvia Plath pela sua poesia mais nitidamente confessional que atraiu grande curiosidade tanto pela obra quanto pela vida da autora. Vida essa que viu Ted Hughes como motivo tanto de glória quanto de miséria.
Mas, basta uma primeira leitura de “A última carta” para emocionar-se com as atribulações do também passional e aflito Hughes. O furor, a aspereza e até mesmo, dificuldade em seguir qualquer óbvia cronologia dos eventos dos dias que antecederam o suicídio de Plath, não deixam de ser a grande riqueza que caracteriza, no geral, esse poema de Hughes, um autor com predileção por versos paradoxais, abruptos e repetitivos. O poema “A última carta” espelha tamanho tormento que, não fosse o autor um artista tão consciente da sua técnica, seriam versos puramente vigorosos.
Com esses rompantes ácidos e amotinados, Hughes nos dá conta de todo o senso de perda descrito em “A última carta”. Nunca a vida em comum desse célebre casal pode ser acusada de monótona. Suas biografias renderam tantos assuntos e especulações que tornou-se necessário peneirar com olhos vivos as fontes de informações, tão abundantes e frequentes.
E como tudo que envolve Plath e Hughes tem seu peso dramático, as entrelinhas dos versos do poeta inglês denunciam o desencontro entre os dois amantes. Infelicidade essa que se refere não somente ao desencontro dentro do casamento, mas mais precisamente sobre as divergências dos últimos dias em que Plath esteve viva.
A fragilidade psicológica de Sylvia é evidente no plano que tentou colocar em prática. Enviar uma carta a Ted Hughes, que chegaria no seu destino depois do seu suicídio. Mas os muito competentes serviços do Royal Mail se anteciparam fazendo com que Hughes corresse para a casa de ex mulher, cobrando dela senso, coragem e lucidez, já impraticáveis para ela. Sylvia, tão mal interpretada, não conseguia se livrar de seus distúrbios emocionais e psicológicas que se manifestavam desde a infância e nunca receberam o socorro devido.
Conforme a biografia sobre Ted Hughes escrita por Sir Jonathan Bate, o poeta nunca escondeu seus vários amores, amantes, inclusive durante o casamento com Sylvia. Em “A última carta”, ele faz uma espécie de retratação sobre seus hábitos. Digo retratação feito uma tentativa de acerto contas, já que não há culpas ou desculpas evidentes. Há intensidade. No caso de Hughes, com drama áspero e com propósito, duas das suas mais requintadas qualidades artísticas, até o fim.
Seguindo o estilo polêmico que sempre acompanhou a vida do poeta, há quem palpite que Hughes tenha achado seus versos sem técnica suficiente para incluí-los na publicação do volume “Birthday Letters”. Mas eu duvido das intenções publicamente conhecidas de qualquer artistas. Eu me pergunto: uma carta com tal peso, com toda a suposta documentação do fim ou, quem sabe, uma grande farsa só capaz em sofisticadas ficções, mesmo que confessionais, Hughes foi incapaz de rasgar, queimar ou perder os versos. Fico aqui pensando que era isso mesmo que ele queria: concluir um amor mal resolvido sem qualquer comentário a seguir.
Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum” (Editora Pasavento), já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Mallarmargens e Confeitaria. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. Lança este ano o livro de contos “A loucura dos outros” pela Editora Reformatório.