De quando me afoguei
O dia que me afoguei foi como qualquer outro. O mar morno. A praia lotada. Quase meio dia. Nada diferente das outras manhãs do verão nublado em que me acostumei a sair de casa cedo, ir caminhando pelas ruas, ignorar os apressados em seus dias úteis. Meu ritual sempre o mesmo: tirar as sandálias ao pisar na areia, sentar ali mesmo na parte fofa, contemplar o vazio sem barco da linha do horizonte. Nesse dia não demorei muito nessa contemplação. Tirei a camiseta e a bermuda. Fiz uma trouxa, guardei o celular e o relógio dentro dela. Fui a passos curtos. Toquei a espuma das ondas. Senti as canelas molharem de sal e sargaço. Senti a primeira onda espirrar o resto do mar na minha cara. Minha alma agradeceu, fui eu que deixei ela me acertar. Essa praia sem nome é de quase nenhuma onda, mar sem perigo, me disseram. Também me disseram que nunca nessa faixa entre os dois rios ninguém se afogou. Acho que toda praia deveria ter o nome do seu primeiro afogado.
Nadei por entre as ondas até ficar com água no pescoço acompanhando o sobe e desce antes delas se quebrarem. Fundura segura, meus pés tocavam a areia quando eu queria. O sol lá em cima encolhido por trás das nuvens. Tive o tempo todo pra mim. Prendi a respiração e mergulhei. Dei braçadas de olhos abertos rente ao fundo desviando das pernas dos banhistas. Tubarão fajuto. Estiquei os braços ao máximo da minha envergadura e rasguei os pequenos metros daqui até ali como se fosse muita coisa. E foi muita coisa. Me senti bem. Um campeão mundial. Submarino nuclear de uma mínima zona abissal. Depois me veio a vontade bruta de imergir, sem braçadas, sem distâncias, sem ímpeto de campeão, só fechar os olhos, encolher pernas e braços em posição fetal e simular o espaço sideral, no fluxo, no contrafluxo, à deriva. Morder os lábios e aguentar, aguentar e contemplar o prazer de sufocar. Escutar o mundo lá fora e resistir a vontade dos pulmões em desistirem dessa brincadeira.
Até eu me afogar, isso foi, tudo foi uma brincadeira. É claro que eu sabia o tempo todo que beirava um vulcão, só não sabia que poderia ser devorado por ele. Não fui o cometa sem rumo que encerra sua eternidade ao entrar em colapso na gravidade de um astro qualquer. Por mais suave que fosse o perigo eu sabia que era possível escorregar para ele. O mar me aliciou e apesar de no fundo eu não querer me afogar, uma curiosidade sobre isso sempre pairou sobre minha cabeça. Escorreguei para longe da praia por ser natural escorregar.
Quando abri os olhos, tava bem longe da costa. Não tinha mais ninguém do meu lado. Não me desesperei. Respirei fundo, mirei a praia e comecei a nadar. Uma, duas, três, dez, cinquentas braçadas, mas ao invés de me aproximar eu ficava mais distante. Ainda assim não desesperei. Gritei, alguém no raso com certeza iria me ouvir. Ninguém me ouviu. Se divertiam de costas pra mim. Mas, né, não tinham nenhuma obrigação comigo. É cada um por si. E se alguém viesse me salvar, é provável que teria se afogado junto comigo. Mesmo assim gritei mais alto, agora sim eu tava desesperado. Engoli água. Calma, preciso ter calma, eu dizia pra mim, tudo se resolve, ninguém se afogou nessa praia, não vou ser o primeiro. Mas meu coração rebatia o contrário, meu coração dizia, cara, você vai se afogar nessa praia de ondas calmas sem salva-vidas, e não importa a força que você faça pra que isso não aconteça, será inútil, é só questão de tempo pra você afundar. Tentei. Juro que tentei, talvez noutra hora tivesse conseguido. Nessa última hora não consegui. Dentro de mim não tinha uma poção infinita de estamina, a adrenalina arrancou tudo que pôde arrancar. Tive que parar, não tinha mais forças nem pra fechar a mão. E apertava a mão como se segurasse uma corda, não, não tinha corda nenhuma, só o ar vazio. Gritava, mas nenhuma palavra saía da minha boca. Eu persistia em flutuar por ainda não ter engolido água o necessário pra afundar. Nada pude fazer a não ser fechar a boca, mas nem isso conseguia fazer. Me tornei um ser de músculos frouxos, bote velho puxado pela correnteza. A calma dos afogados, meus olhos refletiam a calma dos afogados. A placidez do baleado que já perdeu tanto sangue que a dor se tornou sua morfina. O olhar de dor de peixe, de um peixe fresco pulsando o seu resto de vida no balcão da peixaria.
E nesse demorado quase eterno momento antes de afundar, comecei a cogitar que esse último ato não seria o fim. Que no fundo do mar, além de pedras, moluscos e crustáceos, algo sem forma, sem cara e sem nome me abraçaria, me transformaria em luz e me levaria pra uma dimensão paralela, sei lá, qualquer coisa. Algum sossego, uma outra dor menos crua. Muito inventei como subterfúgio pra me convencer que apesar de não existir mais salvação de resgate, uma redenção final me esperava. Por baixo dos meus olhos de peixe morto, um brilho que suspirava pelo fim me rasgou as vistas. Eu não entendia mais onde ficava água, onde ficava a praia, onde ficava o céu. Sabe, procurei beleza naquilo tudo, mas não tinha, só fadiga. Não tinha nenhuma sombra de campeão que eu tinha sido quase agora. Falsa beleza. Só sofrimento. Não tinha salvação. Mil pesos dentro dos bolsos da túnica de chumbo que o poder desigual da natureza vestiu o meu corpo. A gravidade venceu o empuxo e fui descendo, desafogando tudo o que restava em mim.