Somos, lagartas ou borboletas?
Não iniciar dizendo que Antônio Carlos Viana é um dos melhores escritores brasileiros, atualmente, seria um erro absoluto. Não é necessário vasculharmos a sua bibliografia para termos certeza disto, se partirmos do seu último livro, publicado pela Companhia das Letras, em 2015, será possível notar que as 27 narrativas apresentadas são exemplares e que dizem muito sobre como uma escrita literária pode ser tão concisa e cheia de potência.
Jeito de matar lagartas é um dos melhores livros que li nos últimos dois anos. Talvez isso tenha ocorrido porque ele se situa ao redor de alguns temas que me são caros, que giram em torno do ser humano, mas talvez também porque em meio a tanta publicação de novos autores, Viana é um dos poucos que se destaca por saber como estruturar uma história de maneira excepcional ou por fazer com que visualizemos cenas que nunca nem sequer imaginamos ser possível acontecerem. O livro traz consigo algumas pequenas obras primas; a cada novo conto, é possível conhecer personagens profundos que não imaginamos existir, desestruturando qualquer leitura.
De início, deparamo-nos com uma muralha que parece não conseguir ser construída, mas que ao mesmo tempo deve ser demolida. Dona Irene, que perdeu marido e filho em um acidente de ônibus, de nada sabe. Os responsáveis por lhe contarem do ocorrido é um casal de vizinhos que, não podendo adiantar-se até a vizinha (ou não desejam adiantar-se) para lhe contar as notícias fúnebres, envia os dois filhos.
É interessante perceber que indiretamente e de maneira sútil Viana já apresenta as personalidades desordenadas dos pais e a forte presença que seus filhos possuem. Eles, que foram enviados para não contar sobre a morte de Lelo e seu pai, contam ao leitor que não sabem mentir, pois assim lhes ensinaram na escola:
“Eu e Vivi ficamos apreensivos, não sabíamos mentir, assim nos ensinaram na escola, assim meu pai tinha nos ensinado também. Chegamos lá e perguntamos por Lelo só por perguntar, porque a gente sabia que nunca mais que ele fosse voltar pra brincar com a gente.”
Já se é difícil ser criança e suster um segredo, ainda mais um que envolva a morte, sem deixar transparecer nada de errado em nossas feições. Vivi e seu irmão entram na casa de Dona Irene vão tentar montar o quebra cabeça da muralha da China de Lelo, que era seu preferido. Como não perceber a força que há na história que abre o livro? A potência está a cargo de duas, aparentemente, pequenas crianças. Elas passam a manhã inteira na casa de Dona Irene, que prepara uma rabada para o almoço, enquanto espera que pela porta entrem seu filho e marido. Os pais parecem ter enviado seus filhos na tentativa de que ao chegar na casa de Dona Irene essa já soubesse do ocorrido e eles só pudessem vir a lamentar. Mas o que ocorre é que o casal enfim chega, e estando tudo ‘normal’, não consegue contar a notícia, ficando sem conseguir contar sobre o acidente. O desenlace final é um prelúdio do que poderemos encontrar em todo o resto do livro.
A meu ver, os personagens de Viana, sem exceção, possuem todos uma personalidade marcante, quase impossíveis de esquecê-los. E pensei eu, por um momento, que as crianças que gostavam de matar lagartas, sem saber que elas virariam borboletas, trariam em consigo toda a carga emotiva que eu poderia alcançar na leitura deste livro, pois elas nos ensinam que cada um de nós aprende seu jeito de matar lagartas. É necessário aprender para que se possa sobreviver, senão podemos ser mortos em nossa própria cama por uma lagarta escondida em sob nosso travesseiro.
Mas, quando li o conto “Cara de Boneca”, foi preciso parar. É necessário, às vezes, que se pense e pare para pensar. É necessário entendermos o que somos, o que fazemos. Mesmo diante de tanta miséria humana ainda é necessário que escritores como Antônio Carlos Viana nos digam como nós somos em nossa maneira de existir.
Quando ele cria Seu Lilá, um homem pobre que todos os dias passa pelas ruas do bairro feito louco, perdido, carregando sua carroça cheia de coisas, acompanhado de sua cachorra Paquita, é possível se sentir menos gente quando vemos a crueldade que uma criança pode ter em si. Na verdade, são várias as crianças em que podemos ver a maldade do ser humano, as mesmas que por trás do cemitério melavam as coxas de Seu Lilá, tornando-se “homens”. Só assim, na leitura de um conto como este, quando se pensa que já conhecemos tudo, pois convivemos neste mundo cheio de horrores, é que se percebe a verdadeira humilhação que alguém pode sofrer.
Naquele lugar, já crescíamos sabendo de tudo, e seu Lilá era apenas uma confirmação de que o mundo se dividia entre os de coração aflito e os de maldade extrema. [...] Foi aí que nossa maldade aflorou com toda força.
É diante de histórias como essas, em meios a versos de Camões, que ficamos conhecendo os personagens do autor sergipano, que são em sua maioria pessoas mais velhas, seja ela uma senhora de sessenta anos, com a qual não consegue conviver razoavelmente bem com sua libido que parece não ter fim, e por não ter nunca encontrado um grande amor, como se isso fosse o mais importante; seja ela uma mulher que com o passar dos anos, tendo conhecido vários homens, ainda não conhecia o seu ponto g. Viana constrói personagens humanos, faz o que poucos jovens escritores conseguem fazer. Não é à toa que indicarei seu livro como um dos melhores livros que já li e que temos que ter como ponto de partida para se aprender a escrever uma literatura que contribua para ampliarmos nosso conhecimento sobre o que pensamos dos seres humanos.
A condição humana nos é cara e deve ser mais trabalhada como em outras épocas foi. Há de se deixar as risadinhas de lado por um momento, necessita-se entrar pelas vielas do subsolo e voltarmos a produzir uma literatura que nos desestabilize. Os escritores de algumas décadas atrás têm trazido isso à tona nos últimos anos e mostrado que não é apenas o marketing que vence. O importante é que façamos como Dona Maria Reina, que “não sabe se é meio doida ou se todo mundo é assim mas não conta nada dessas intimidades para ninguém”, pensando que está só no mundo, quando na verdade estamos todos profundamente conectados sendo lagartas e borboletas.