Quem daqui conheceu o pedreiro Pedro?
Pedro pedreiro nunca chegou a ouvir a poesia que Chico Buarque fez para ele. Não entregaram na sua casa um exemplar autografado do LP. A música não tocou no rádio do porteiro do prédio que Pedro pedreiro construiu e não morou. Pôde até ter passado na TV, mas Pedro pedreiro nunca foi de ficar olhando pra tela. Dia útil, dia de trabalho. Chegar com sono latente, depois da sopa ir pra rede, descansar as pernas e os braços pro próximo dia. A pressa de aproveitar as horas de sono embalava o sonho de Pedro, um sono de pedra, um apito de trem: o dia já vem...
Pedro pedreiro nunca soube por onde a tal música voou. Nunca saberá que tocou nas mais seletas rodas intelectuais da bossa da ditadura nova. Seus degustadores ostentavam copos de uísque e camisas estampadas com o rosto de chê sobre blazers blasés, ao redor das vitrolas, prostrados feito budistas em torno do rinponchê. Esses iluminados, em suas teorias modernas, pós-modernas e o caralho a quatro, elevavam a palavra pedreiro a um sobrenome, Pedreiro; como se ele tivesse, por obrigação divina, essa missão desde o nascimento. Mais que congênita, hereditária. Um título monárquico às avessas, um pedigree de vira-latas. Herdeiro do clã dos Pedreiros. Eruditos da pá, do carro de mão, do manejo da brita, da terra, do barro e da colher, obviamente, de pedreiro.
Olha o que já cheguei a ouvir numa mesa redonda num desses eventos acadêmicos chatos que nem sei como parei lá. Uma senhora multiplamente pós-graduada na obra de Chico, falou que ele voltou a falar novamente de Pedro na música Construção, em que um operário cai lá do décimo andar atrapalhando o trânsito. Os motivos da queda não foram esclarecidos pelo autor, e nem precisava, dizia ela, tava na cara que era o automatismo. Começou a falar de Chaplin, Tempos Modernos, depois chafurdou-se em referências diversas de diversos autores que não tive saco de saber quem eram. Aí outro, um velho birrento, com o dedo em riste, vociferou do seu lado: nada disso, minha senhora, até concordo que seja mesmo o Pedro pedreiro, mas o indivíduo em questão tinha sim consciência do fato ao realizá-lo, não foi um autômato, muito pelo contrário, inconformado com a conjuntura social em que se encontrava o país pós-AI-5, sob condições precárias de trabalho e salário, o sujeito recorreu ao martírio, assim interrompendo o trânsito, e veja que o termo trânsito, blá, blá, blá, e mergulhou na mesma lama de referências da adversária. Pode ter sido um Zé ou um Jão, mas deixem Pedro fora disso. Pedro pedreiro continuou vivo. Forte. Cagando e andando pra teorias.
Bora ser sincero, no fundo no fundo, ninguém ali chegou a conhecer Pedro pedreiro. Pedro nem sabe o que vem a ser mesa redonda. E Chico? Será que Chico conheceu algo de Pedro pedreiro? Será que foi na casa dele, bebeu de seu suco de manga, comeu do seu combinado feijão, arroz e galinha? Pedro nunca ouviu falar de Chico, então Chico não foi. Como já falei, nem pelos fones do rádio Chico saiu. E nesses debates sobre Pedro, uma hora ou outra, é de Chico que falam; ele sempre é lembrado. Hoje e por muito tempo será lembrado pela obra incontestável que construiu. Fez por merecer. Ano após ano. Disco após disco. Ortodoxo. Cimentou tijolo sobre tijolo uma carreira com poucas falhas. Por sua obra, vai alcançar a posteridade. E não é essa falsa eternidade o que buscam o que vivem no terceiro planeta no sentido de quem vem do sol?
E os planos de eternidade de Pedro? Quais eram? O que ele pensava quando sol se amarelava em sua frente? Que dilemas incomodavam Pedro antes de dormir? Reformar o banheiro, trocar a pia, fazer uma puxada lá no quintal? Criar os seus filhos, não deixar nada faltar... tenho pra mim que foi essa sua missão. Os anos voaram, cada um tomou o seu rumo. Dois ou três se descaminharam. O resto, sabe-se lá o que deu na cabeça do destino, todos os outros, por escolha ou não, se tornaram pedreiros. E o pai tava lá pra passar pra eles os truques do batente. Ensinar os traquejos pra fazer uma massa consistente. Como atarraxar a correia do capacete pra não ferir a pele. Como guardar a marmita pro almoço não esfriar. Como transitar pelo andaime pra não se estrepar feito o outro Zé ou Jão. E assim como Chico barganha sua imortalidade ao ser ouvido por gerações, Pedro pedreiro se eternizava na mente dos filhos. Ser lembrado. Chico por um milhão, Pedro por meia dúzia. Macro, micro, mesma coisa, só chegue longe ou vá pra perto. Era chegar com uma lupa naquela casa daquela rua que não sei onde é pra ver que através da comunicação oral Pedro pedreiro fomentou seus princípios. Tijolo sobre tijolo. A missão de Pedro, sem que mesmo soubesse, tava mais que cumprida.
E o paradeiro de Pedro pedreiro? Pelas contas, ele já deve ter se aposentado, por sorte, morto, enterrado. Mas, vocês sabem, né?, tanta coisa pode ter acontecido com ele que qualquer um pode inventar o que quiser. Eu bem poderia dizer que ele sucumbiu, era de noite, em um sonho de fevereiro, ao ouvir sua música pela primeira vez. Dito isso, fechar a conta e partir pra outra... Mas não, é inconcebível que Pedro pedreiro vá embora assim, no trem que esperou por toda a vida. É inevitável que eu pondere e torça por outra possibilidade. Pedro pedreiro nunca envelheceu, durante essas décadas nunca faltou a um dia de batente. Tá lá, no mesmo posto, na mesma obra, com a mesma idade, com o mesmo salário, com as mesmas ferramentas, com a mesma comida; faz a mesma rota diária casa-trabalho-casa. Conjectura o mundo do jeito dele. Ignora a ordem dos planetas, a ordem mundial e sua própria ordem. E se você tivesse levantado a cabeça, olhado pro lado, talvez já tivesse se esbarrado com ele. É certo uma coisa, nem eu nem você, a gente nunca vai conhecer Pedro pedreiro nesta música que carrega o seu nome e que a gente escuta em repeate de olhos fechados.