A utopia de um mundo melhor?
Faltava uma semana para as eleições. Toca o celular, era um grande amigo. “E aí, Marco, bora pras ruas?”. Digam e pensem o que quiserem, mas sou um otimista. Não por natureza, não seria honesto afirmando isso, mas aprendi a ser ou, pelo menos, luto todos os dias contra meu pessimismo atávico. Se um dia ele se instalar, deixarei de ser professor e vou fazer alguma outra coisa que exija menos pensamento positivo em relação ao futuro. Não estou vendo a educação com olhos sentimentais, isso pra mim é fato. Do que adianta ser professor e achar que a realidade não tem jeito? Há quem consiga, não eu.
Convite feito, nos encontramos e fomos nos juntar a outras pessoas em diversos lugares da cidade que, como nós, se aglomeravam na esperança de somar votos para quem acreditávamos – e ainda acreditamos – que pode conduzir o país de uma maneira menos voltada para as minorias que concentram poder e renda.
A tarde já ia longe quando regressamos. Eu havia deixado meu carro estacionado na frente do prédio do amigo com quem fora; saí do carro dele, caminhei alguns passos e entrei no meu. Era uma caminhada breve, e naquele domingo morto, eu conseguia ouvir o som dos meus passos tocando os pedregulhos. Foi quando me virei brevemente para pegar o cinto de segurança que vi, pelo canto do olho, um garoto encolhido do outro lado da rua. Ele devia ter uns 16 anos, era muito moreno, magérrimo, e carregava no olhar um peso de quem já tinha visto coisas demais nessa vida. Não fiquei amedrontado. Ao contrário, deixei que ele viesse. Ele atravessou olhando para ver se não vinha carro, sinal de que não queria morrer, como disse pouco depois. Mas antes, foi assim:
“O senhor pode me arranjar um real pra eu comprar comida? Tô morrendo de fome”.
Eu olhei nos olhos dele e disse: “Você não vai comprar comida, você vai comprar drogas. Pensa que eu não sei o que você estava fazendo entocado ali naquele cantinho?”
Ele negou (“É não, tio”). Eu disse que não era o tio dele, que ele podia me chamar de Marco e perguntei seu nome, que passei a usar dali pra frente. Comecei a perguntar trivialidades, como onde ele morava e se estudava, enquanto ganhava tempo refletindo se dava algum dinheiro a ele ou não. De repente, um carro passa muito próximo a ele, e eu disse: “Pode chegar mais perto da porta, eu não estou com medo de você”. Ele se aproximou, hesitante, não sei se com medo que eu lhe fosse fazer algum mal quando ele chegasse perto o suficiente, não sei se tentando demonstrar que não iria me fazer mal algum. O certo é que dessa forma ganhei a confiança dele, que passou a conversar comigo sobre o que passava na sua cabeça.
“Eu queria ter morrido, já. Lá em casa todo mundo me bate. Minha mãe, o cara com quem ela vive, meus irmãos. Tem mais de mês que eu não piso em casa”.
Eu não sabia o que dizer. Ele só sabia repetir, entre uma coisa e outra, que preferia estar morto, deixando claro que sentia como se já tivesse vivido uma longa e apocalíptica vida. E seu discurso era entremeado por uma fala nervosa, com frases repletas de cortes e sons alongados, uma linguagem típica de quem é filho das ruas. Mas eu lembrei que ele havia olhado para os lados ao atravessar. Não, ele não queria morrer. Ele queria ajuda, queria colo, queria afeto.
O sentimento de impotência que se abateu sobre mim foi tão absurdamente doloroso que a reação do meu corpo foi fazer com que meus olhos marejassem. Perguntei a ele se ele não queria sair daquele vício. Ele disse que sim, queria, mas que com a realidade que vivia, era melhor ficar noiado o dia inteiro, assim ele amortecia um pouco aquela infeliz existência.
“E como você faz pra conseguir dinheiro? Você rouba das pessoas?”
“Não, nunca!” – ele disse com força e veemência, como quem defende uma ideia com paixão. “Eu só peço. Se me dão, agradeço, se não, peço mais adiante. Foda é quando aparecem uns policias pra querer bater na gente quando vê a gente no sinal.”
Outra pancada dentro de mim. Onde já se viu uma polícia dessas?! E sei que ele não está mentindo. Pode até estar, no caso dele, mas basta abrir os jornais. Todas as frustrações salariais, por falta de reconhecimento, de investimento, seus problemas pessoais... todas são descontadas no lado mais frágil da corda. Respirei fundo.
“E não aparece ninguém querendo ajudar?”. Ele disse que sim. Que “tem um senhor” de uma ONG que cuida de drogados que “de vez em quando me chama pra eu fazer o tratamento”. E por que não faz?, perguntei eu.
Chegamos aí à terceira porrada: porque e depois? Depois ele ia ser o mesmo cara sem perspectiva alguma, magro, feio, cara de doente, sem escolaridade alguma. Nesse momento, falei a ele de um familiar meu que tinha passado pela mesma situação. Disse que ele tinha ido pras ruas com 17 anos, que começou a usar drogas e depois não sabia mais como parar, que tinha abandonado a família e a escola, mas que tinha feito o tratamento, voltado a estudar e que hoje estava trabalhando. Nada disso jamais aconteceu com um familiar meu, tudo invenção, mas eu precisava dizer algo com que ele pudesse se relacionar. E esse foi um dos poucos momentos em que eu vi uma centelha de alegria no seu corpo.
Não bastasse o fato de eu estar dentro de um carro, sentado confortavelmente (enquanto ele muito raramente deveria ter algo acolchoado para colocar debaixo de si), da nossa diferença de cor de pele, de situação econômica; não bastassem todas as nossas diferenças e minha impotência diante do fato de eu não saber como poderia ajudá-lo naquele exato instante, eu ainda iria tirar qualquer possibilidade daquele garoto vislumbrar um futuro digno?
Disse a ele que ensino. Ele perguntou onde, perguntou se eu sempre andava por ali. Ele queria claramente ser adotado. Queria alguém que o fizesse ver para além de um fim cruel. E eu ali, sem estar ali.
A verdade é que, tantos anos depois de me entender como gente no mundo, eu me sentia um pulha. A verdade é que eu, que tantas vezes me posiciono criticamente com quem só enxerga o próprio umbigo, que procuro me inteirar de movimentos sociais e do que acontece na sociedade, sentia-me, naquele momento, como o mais completo alienado de uma classe a que sequer pertenço. A verdade é que eu me sentia aquém de qualquer traço de humanidade, e pouco ou nada tinha ali de habilidade para tentar resolver aquela situação. Que posso fazer, perguntei-me eu, se ele é tão resistente? Aliás, e se ele não fosse, ainda assim, que faria eu?
Por um instante, perguntei-me se havia alguma maquinação divina para que eu passasse por aquilo, para que eu me desse conta da minha pequenez humana, minha insignificância. Logo eu, que questiono tudo tanto, o tempo todo. Mas nunca acreditei num Deus capaz de pregar peças. Muito Velho Testamento pra minha cabeça.
Num ímpeto, disse a ele: “Eu não vou lhe dar dinheiro. Se você quiser te compro comida”. Por um instante ele pareceu perder o interesse, recobrado dois segundos depois. “Entre aí, nós vamos comer um sanduíche”. “É pr’eu entrar no carro?”. “É sim, vamos logo que o teu sanduíche já deve estar esfriando!”
Fomos a um lugar lá perto. Eu já estava disposto a comprar briga caso não quisessem nos servir por conta da minha companhia, claramente um não-visitante daquele lugar. Surpreendentemente, isso não aconteceu. Mas seus olhares diziam tudo.
Sem saber por onde começar com um sanduíche e um refrigerante, de cabeça baixa disse: “O senhor é um verdadeiro presente de natal fora de época”.
Perguntei-me se ele sabia o que era um presente de natal. Eu duvidava que ele soubesse de algo para além do ouvir falar. E aquela situação toda parecia cada vez mais irônica pra mim. Eu não tinha a menor intenção de ser assistencialista, mas era aquilo que estava acontecendo, bem diante dos meus olhos.
Na volta, dentro do carro, ele me disse espontaneamente que iria procurar ajuda. Vibrei, ainda que eu, no fundo, ache que aquela frase não duraria até a próxima pedra de crack.
Antes de me despedir não pude evitar e puxei dois reais do bolso. Se esses dois reais iriam ajudar na destruição dele ou em aplacar sua próxima fome, creio saber a resposta, embora aquele otimista que habita em mim também queira refutá-la. Ele tem escolhas, embora não tenha condições psicológicas de fazê-las.
Depois, longe dele, pensei comigo que a mágica que só iria acontecer dali a mais de dois meses, transformando todo mundo em gente boazinha e do bem durante o frenesi das compras, das cestas básicas e das caixinhas de natal em portarias, parecia ter mesmo me tocado com antecedência.
E no natal propriamente dito, lembrei-me daquele garoto, pensando se àquela altura ele estaria vivo. Na impossibilidade de responder a pergunta, caminhei para dentro do ano seguinte com a certeza de que essa dúvida sempre me faria companhia. E seja pra ele, pra você ou pra mim, aprendizado é mesmo todos os dias.