Bateau Mouche - Uma tragédia brasileira
Eu ainda não tinha dez anos quando vi no noticiário que uma ambarcação havia afundado na noite de reveillon no Rio de Janeiro, matando mais de cinquenta pessoas, inclusive gente que era famosa à época, como a atriz Yara Amaral, vencedoras de grandes prêmios de teatro e TV, no auge de sua carreira.
Meu imaginário rapidamente se apoderou daquela notícia, da qual nem lembro direito, e imaginou um navio repleto de gente, pessoas gritando na tentativa de se salvarem, todo o escarcéu criado pela histeria generalizada, praticamente um Titanic.
Quase trinta anos se passaram para que eu viesse a entender, com as riquezas de detalhes e o apuro jornalístico necessário, o que minha mente apenas guardava como quase memória, ou seja, uma lembrança semi-inventada.
Essa clareza toda se deve ao mais recente livro do escritor Ivan Sant’anna, Bateau Mouche – Uma tragédia brasileira (Editora Objetiva, 168 páginas). Ivan fez um levantamento primoroso de todos os detalhes acerca da tragédia. Adepto de um estilo herdado da escola norte-americana de fazer reportagem de uma maneira cinematográfica, mais do que amontoados de dados, o livro de Sant’anna torna-se, diante dos olhos do leitor, um filme do qual não se consegue desgrudar.
O autor junta os dados de uma extensa pesquisa a histórias pessoais de passageiros e daqueles que, mais adiante, serão os salvadores de muitos deles, além de contextos históricos relevantes, costurando uma trama tão absurda quanto verídica.
Através da narrativa de Ivan Sant’anna, ficamos sabendo que na verdade o Bateau Mouche IV, que afundou no fatídico 31 de dezembro de 1988, na verdade nunca foi um navio. Foi um lagosteiro fabricado na década de 70 em Fortaleza, batizado de Kamaloka, e no qual não cabiam mais que vinte pessoas; e que depois seria vendido e rebatizado de Prelúdio para servir de motel flutuante ao seu novo dono para, em seguida, ser vendido mais uma vez, agora para a Bateau Mouche Rio Turismo, empresa que faria uma reforma gigantesca naquele mesmo lagosteiro onde só cabiam 20 pessoas, criando dois andares sobre a embarcação original, além de um terraço suplementar, e então colocaria nele o nome com o qual ele veio a afundar.
Também sabemos do que aconteceu após o fato, com os trâmites na Justiça (que perduram até hoje!) e a enormidade de famílias e sonhos desfeitos, literalmente de uma hora para outra.
Ivan Sant’anna consegue demonstrar, num livro vertiginoso e que jamais perde o ritmo, o potencial explosivo de uma narração investigativa bem-feita, características pelas quais ganhou fama através de uma série de livros que exploram tragédias da aviação brasileira, dentre outras obras. Para quem ainda não conhece os livros do autor, adentrar na narrativa de Bateau Mouche – Uma tragédia brasileira é um bom começo, que certamente lhe levará a outras histórias contadas por este exímio artífice das palavras.