O Vilarejo de Raphael Montes
A verdade é que gosto dos livros que me fazem ler de uma única “sentada”, como costumamos dizer. É como se a potência que existe na literatura nos revigorasse quando um texto assim nos cai aos olhos. Contudo, após a leitura, sempre suspeito de mim por ter gostado daquele livro que me fez desapegar do mundo e pensar em coisas que antes, ou que talvez, fossem necessárias serem repensadas naquele momento. A vontade de busca para se chegar em algum ponto, crendo existir um motivo por qual aquele determinado livro existe, ou por quais razões as ideias ali pensadas nos emocionam de alguma forma, muitas vezes, me faz desistir. Quase sempre a desistência ocorre devido ao desenvolvimento do pensamento que se dá quando uma obra trata, principalmente, do viés humano, tema esse que me é tão caro. E que, parece, também ser caro ao escritor Raphael Montes.
Nunca havia lido um livro do escritor carioca. O que havia me chegado até então, antes que seu livro O vilarejo me caísse em mãos, era apenas uma badalação que rodeava o escritor. A única coisa que sabia dele era que é um jovem escritor que está, aos poucos, galgando espaços dentro da literatura policial. Seus dois primeiros romances, Suicidas (2012) e Dias perfeitos (2014), fizeram algum estardalhaço. E isso é extremamente interessante no Brasil, uma vez que o romance policial por aqui parece não ser o preferido entre os escritores e entre os leitores. Ainda tendemos a ler apenas o que é trazido de fora.
Contudo, não sendo um romance policial, o livro O vilarejo traz aos olhares do leitor brasileiro uma espécie de romance que estava à margem – ao menos faz um certo tempo que não vejo nenhum escrito assim – o romance que se chama fix-up, aquele capaz de, aos poucos, ir contando histórias de personagens ‘avulsos’, mas que possuem um elo entre si, estrando relacionados dentro de um mesmo espaço.
A verdade é que Raphael, em O vilarejo, consegue fazer isto muito bem. Lentamente, como se não houvesse nenhuma preocupação, vai inserindo-nos no mundo de Elfrida Pimminstoffer, na região da Ciméria, no Leste Europeu, através das sete histórias que descobriu em um caderno antigo. Vamos conhecendo as histórias contadas pela bisavó de Ana, como diz o tradutor dessas histórias, o próprio Raphael Montes, que trazem em si muito do horror que o humano pode propiciar.
Assim, cada história vai levar o nome de dos Sete Reis do Inferno, os quais eram responsáveis pela invocação dos pecados capitais entre a humanidade, sendo os seguintes demônios: Asmodeus, Belzebu, Mammon, Belphegor, Satan, Leviathan e Lúcifer. Já na primeira história, com um final arrepiante, podemos perceber por qual motivo o autor quis trazer à tona esta obra. Evidenciando, no início, a luxúria que a mulher de Anatole acaba por despertar, mostra a que ponto a necessidade pode estar aliada à loucura, fazendo com quem uma mãe consiga despertar o pior furor em si diante de seus filhos.
Sendo assim, vamos percorrendo todos os pecados capitais através de histórias que mostram como uma velha ficou cega, ou como duas negrinhas, filhas de um negro que passava pelo vilarejo, acabaram virando comida, diante do frio ameaçador que pairava sobre o vilarejo. Além disso, é interessante observar que os Reis do Inferno não se preocupam com a ideia do humano que vive entre nós, seja ele uma criança, como as irmãs Vália, seja já um ferreiro experiente, o terror existe e ele será usado contra quem rodear aquele que está sendo, digamos assim, atingido pelo pecado capital.
A escrita de Raphael Montes nos faz querer, a cada página, saber o que acontecerá com o novo personagem que surge. Na primeira narrativa, o final nos deixa cegos diante da falta de misericórdia, elevando ao máximo o clímax da narrativa. Algo que fiquei esperando nas histórias que vão sendo contadas.
Contudo, essa potência acaba por desaparecer ao longo de "O Vilarejo". Vamos, aparentemente, nos acostumando com o que virá. O terror já não abala a nossa ‘modernidade’. Diante de tantos acontecimentos sórdidos que são anunciados diariamente em todas as mídias possíveis, um livro como esse é difícil de nos colocar diante de alguma miséria humana que não conheçamos, mas ele não deixa de ser essencial para que possamos refletir justamente sobre esse costume que nossa sociedade está vivendo, o de preferir saber sobre as coisas terríveis.
O livro, que é ‘recheado’ de ilustrações de Marcelo Damm (nome que só aparece na ficha catalográfica) acaba tentando mostrar um pouco dessa crueza que perpassa os textos do livro. Ainda assim, vendo uma negrinha amarrotada dentro de uma mala, ou pedaços de pessoas dentro de uma panela fervente ou até a imagem de Satan não nos amedrontam. O que me faz agora pensar se realmente o autor tinha alguma intenção quanto ao ato de nos amedrontar. Em certo nível isso ocorre, não atingindo uma maior profundidade já pelo que comentei acima.
O vilarejo é uma obra sagaz, pecando apenas, a meu ver, na última narrativa, quando Satan, dialogando com Anatole, parece querer evidenciar algum tipo de moral frente a tudo que ocorreu no vilarejo e com a família de Anatole. Tende a transparecer a ideia de que os homens são os verdadeiros monstros e que o destino está apenas em nossas mãos, mesmo que os Reis do Inferno surjam para nos desviar. Sendo assim, quando refletirmos sobre isso, podemos chegar sempre a uma última conclusão entre nossos iguais:
O monstro é você; não eu.