23 de outubro de 2015

O fim da revisão ou o último beijo ou nadando em clichês

 “The first draft of anything is shit” , Ernest Hemingway

 

A ideia de um livro, sempre imaginei assim, é feito o amor à primeira vista. Fim de tarde, começo de noite, você está andando na rua, leva a sacola da padaria, nem sabe o que vai fazer quando chegar em casa, só quer passar o dia, ver um filme, ler uma revista, curtir fotos alheias. Aí a ideia aparece do outro lado rua ou de algum cubículo de sua mente e nem quer saber, toma seus pensamentos, você esquece do ócio e dos afazeres, joga a sacola de pão em cima da mesa e corre pro caderno de anotações. Ela veio de relance, não deu pra ver direito, você nem sabe ainda seu nome. Vai ser uma longa busca até conhecer ela pessoalmente. E quando conhecer, vai demorar pra ir além de sua superfície. Não sei quanto tempo isso vai durar, depende de você, depende dela. Também pode acontecer de você desencanar, ou ela não lhe deixar avançar. É provável que não dê em nada. É bem provável até você preferir ter o prazer de novamente ir de mente vazia à padaria do que estar perto dela. Agora, fera, se tem química, se o negócio é pra ser, acontece. Já vi muita gente ficar doida por aí por causa de uma ideia.

Conviver com a ideia é o que você quer fazer. Pôr palavras no papel sem planejamento definitivo. Tudo na base do bora ver onde isso vai dar. Capítulo após capítulo. Você não está confortável, nem completamente satisfeito, mas você continua, linha após linha, lauda após lauda, até chegar ao empilhado final de páginas. Aí você olha. Tudo o que acha que deveria ser escrito já está posto no papel. A palavra FIM em caixa alta. Você sorri. Seus olhos brilham. Que instante sublime. É o escritor tendo a permissão da ideia pra que finalmente os dois tenham o primeiro beijo. A vontade é sair e gritar, “Terminei! Terminei!”.

Mas pera, pessoa apressada, não é o final, é só o começo. Até aqui foi só paquera. É quando o livro finaliza que o namoro realmente começa. Pro bem e pro mal, é quando o negócio se torna pra valer. Uma gaiola de ouro mútua. Nem sei quem vai mais depender de quem. O namoro entre você e seu livro é um sacerdócio. É prazeroso sim, mas tem muitos momentos de rusgas, de ajustes. Cortar parte de um livro, um mínimo período, uma mínima oração, é cortar a si próprio. Um escritor amadurece na revisão.

Aí o tempo passa, o povo fala, olha lá ele com seu livro inseparável, com seu livro interminável. É bem comum encontrar vocês em cafés, você com várias canetas, marca-textos, cadernos de anotações. O mundo nem existe, o café esfria, a hora da janta passa. Páginas e páginas riscadas, e você arquitetando junto com o livro o melhor pra vocês. Às vezes você dá ouvido pra o que os outros dizem dessa relação. Há pessoas mais experientes, já passaram por isso, têm o que contar. Às vezes não, às vezes você é turrão, aqui ninguém dá opinião. Você fica emburrado e se tranca com o seu livro numa sala sem janelas e sem olhos alheios. Você é triste sem o livro. É, mas não têm jeito, tem dias que vocês brigam de sair faísca, um acusa o outro por motivos vários, os dois têm razão mesmo quando não têm razão nenhuma; casal complicado, todos sabem. A vida é assim, não tem mais espaço pra conto de fadas, os defeitos vão ser passados na cara. Uma hora ou outra você vai se lamentar por ter avistado a ideia vindo da padaria.

E não adianta falarem que vocês são uns sem vergonhas. Toda crise passa. E, se os dois quiserem, a única coisa que fica é aquela dependência com cara de amor. Não faz mais sentido vocês não viverem juntos. Já estão há muito assim. Pra que mudar? Se a relação não vai tão bem, vocês procuram ajuda de profissionais. Ninguém vai censurar você se precisar apimentar a relação folheando dicionários atrás de palavras que não tenha muita intimidade. Você é esperto, não liga pra isso, sabe que essas palavras exóticas é são um fetiche, segredinhos do casal. No mais, o que fica é a rotina, a busca por detalhes mínimos, por vírgulas acidentais, por concordâncias discordantes, por cacofonias e arritmias que só chegando no peito do seu livro pra ouvir.

Tem dias que você não quer fazer nada, só levar seu livro a tiracolo, a passos lentos, pra pegar o pão na padaria. As cobranças se aposentam. Os defeitos não preocupam mais, são até charme. Citações erradas podem passar por momentos de descontração, a falta de erudição tá aí pra dizer que ninguém é erudito. Quem quiser aceitar, aceite vocês dois como são.

Aí, tem sempre um aí, aí chega o momento que você não queria, um editor ou um edital, uma força divina exige que você e o seu livro tenham que viver os últimos dias. É uma felicidade com cara de tristeza. Vocês deveriam ficar juntos pra sempre. Desse ponto em diante tudo se torna um    processo extenuante. Últimos dias de atenção a quem necessita de cuidados nada prazerosos. É uma obrigação que você faz por ser o último contato e por saber que essas últimas horas de dedicação também serão lembradas no futuro. Os ponteiros passam a mil. E você rói as unhas. Daqui pra amanhã, em que página você estará quando tiver que arrancar o livro das mãos?

Domingo de tarde, você pegou seu livro, suas páginas A4, riscos de caneta e marca-textos. Você deitou na cama, fechou o quarto, desligou a internet e pôs pra tocar uma música sem tradução. Começou a ler em voz alta como se percorresse os olhos por uma partitura. Palavra por palavra. Parágrafos desnecessários, repetições desnecessárias, besteira, tudo que ficou foi necessário. Você nem pensou mais sobre o processo, só leu. Pela primeira vez leu o seu livro. E ele, deitado na cama, sorria, não queria fazer barulho, só queria ouvir. E você foi lendo, lendo, o mundo lá fora e vocês lá. Deu meia-noite, você não chegou ao fim, tinha que enviar o email com o arquivo. Salvou, anexou e enviou. Com o coração doído. O livro foi e você sentiu que segundos antes tinha dado o último beijo.

Você passa agora pelo período de viuvez. A ideia que encontrou na ida à padaria não morreu, poderia estar morta se você não tivesse ido atrás dela. Agora está além de você dizer qualquer coisa sobre ela, o que poderia dizer já foi dito. Vocês não são mais um casal. O livro não é mais seu, você pode só observar, sempre quando tiver saudade, como se observasse as estrelas no fim de tarde, no começo da noite. Até quem sabe um dia, no mesmo passeio você encontre outra ideia. Fica só a esperança abestalhada de que a sua estrela consinta lá de cima. E você se sinta preparado pra começar uma nova relação.