22 de outubro de 2015

A poesia de Pedro Spigolon

*

Meteorologia dos Corpos

Nenhum dilúvio limpará esse ódio

haverá sempre uma vingança justa

sempre uma revolta necessária.

Qualquer apelo é inútil

rezar nem se fala.

Não há onde esconder esse desespero

As crianças não cabem nos bolsos

e ainda precisam empilhar corpos

como os brinquedos de uma guerra.

Um olho nunca será uma bolinha de gude,

uma amarelinha não se pula sobre cadáveres.

O único céu é o da boca

quieta como um dia nublado

em que a chuva encontra o silêncio

que abandonou a carne.

Sangue não é urucum

para pintar o rosto da cidade

com pavor e medo.

Nem tente recostar seu rosto

nessas bochechas que desmancham,

qualquer carinho é um crime

toda empatia uma cumplicidade.

Do telhado do país

a vertigem das gotas,

em vão esfrega essas mãos:

água não lava o horror.

No Jornal Nacional tudo será

paz e progresso

e a previsão do tempo

indicará estiagem

seca das lágrimas

racionamento da saudade.

A vida escorre confundindo

choro com chorume...

Daqui algum tempo,

quando o sol evaporar o medo

o ódio grudará nas nuvens

escurecendo o céu

e novamente seremos

mortos

órfãos

ou cúmplices.

*

Meus olhos estão virados

como se fios de lã os puxassem

para as ruinas da cidade.

— O que há por debaixo

de tanta pedra?

retiro uma a uma

como um punhado

de passado.

Havia de descobrir minha demolição

como se meus braços fossem toda a fome

e as pedras o que há de comer no mundo

mas minha carne é sal podre

e minhas mãos estátuas desmoronadas.

Estranha deformidade do olho

que se lança ao revés do horizonte,

macabro presente do destino

que embrulha o tempo das perdas

e nem ao menos nos oferece

um punhal

para rasgar as tripas

caso não tenhamos

força para jejuar.

*

Salmo do Abandono

o Teu corpo, Senhor,

é uma escadaria interminável

que se pode guardar

na despensa da cozinha

e às vezes encontrá-lo

distraído

lavando a alface

com a barriga

encostada na pia,

cozinhando o tempo

enquanto rezo:

bem-aventurados os que passam fome

mesmo se fartando com Teus sanduíches.

os adolescentes empinam papagaios

até o Teu ombro, Senhor,

retornarão eles com Tua língua

pendurada na rabiola?

poderemos finalmente aprender

o encanto de Teu alfabeto?

será a Tua voz

uma porta rangendo?

Tua lanterna mágica

escurece meu silêncio

descubro uma multidão dançando

no salão de meu esqueleto

não quero a amizade

de manequins

nem amigos caindo como

meteoros

da beira dos pontilhões:

nossas falsas constelações.

já não basta de tarja preta

cartas de amor, perdões renegados

e tanta técnica

nos restarão ainda intermináveis

banhos de Coca-Cola?

será nosso corpo

essa pia entupida?

quero ajudar a soprar, Senhor,

as Tuas trombetas finais

quero nadar na rachadura

do céu impossível

vejo o deserto de São Paulo

como o mais belo castigo

Anhanguera desmata uma rodovia

em meu coração

estou só e viajo

de minha extinção

em linha reta

até o Teu abandono.

 

Pedro Spigolon nasceu em Araras-SP no dia 16 de Abril de 1992, sob o signo do fogo. Graduou-se bacharel em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Publicou poemas em diversas revistas virtuais e impressas como a “euOnça” e a antologia de cinco anos do Jornal RelevO. Já morreu diversas vezes nesta vida. Usa a poesia para dar corpo à sua Imaginação. “espanto” é seu primeiro livro de poesias, publicado em maio de 2015, pela editora Medita, na coleção “Galo Branco”, com financiamento do Proac.

Contato:

pedrospigolon@gmail.com

www.facebook.com/oespanto

www.pedrospigolon.com.br