A poesia de Pedro Spigolon
*
Meteorologia dos Corpos
Nenhum dilúvio limpará esse ódio
haverá sempre uma vingança justa
sempre uma revolta necessária.
Qualquer apelo é inútil
rezar nem se fala.
Não há onde esconder esse desespero
As crianças não cabem nos bolsos
e ainda precisam empilhar corpos
como os brinquedos de uma guerra.
Um olho nunca será uma bolinha de gude,
uma amarelinha não se pula sobre cadáveres.
O único céu é o da boca
quieta como um dia nublado
em que a chuva encontra o silêncio
que abandonou a carne.
Sangue não é urucum
para pintar o rosto da cidade
com pavor e medo.
Nem tente recostar seu rosto
nessas bochechas que desmancham,
qualquer carinho é um crime
toda empatia uma cumplicidade.
Do telhado do país
a vertigem das gotas,
em vão esfrega essas mãos:
água não lava o horror.
No Jornal Nacional tudo será
paz e progresso
e a previsão do tempo
indicará estiagem
seca das lágrimas
racionamento da saudade.
A vida escorre confundindo
choro com chorume...
Daqui algum tempo,
quando o sol evaporar o medo
o ódio grudará nas nuvens
escurecendo o céu
e novamente seremos
mortos
órfãos
ou cúmplices.
*
Meus olhos estão virados
como se fios de lã os puxassem
para as ruinas da cidade.
— O que há por debaixo
de tanta pedra?
retiro uma a uma
como um punhado
de passado.
Havia de descobrir minha demolição
como se meus braços fossem toda a fome
e as pedras o que há de comer no mundo
mas minha carne é sal podre
e minhas mãos estátuas desmoronadas.
Estranha deformidade do olho
que se lança ao revés do horizonte,
macabro presente do destino
que embrulha o tempo das perdas
e nem ao menos nos oferece
um punhal
para rasgar as tripas
caso não tenhamos
força para jejuar.
*
Salmo do Abandono
o Teu corpo, Senhor,
é uma escadaria interminável
que se pode guardar
na despensa da cozinha
e às vezes encontrá-lo
distraído
lavando a alface
com a barriga
encostada na pia,
cozinhando o tempo
enquanto rezo:
bem-aventurados os que passam fome
mesmo se fartando com Teus sanduíches.
os adolescentes empinam papagaios
até o Teu ombro, Senhor,
retornarão eles com Tua língua
pendurada na rabiola?
poderemos finalmente aprender
o encanto de Teu alfabeto?
será a Tua voz
uma porta rangendo?
Tua lanterna mágica
escurece meu silêncio
descubro uma multidão dançando
no salão de meu esqueleto
não quero a amizade
de manequins
nem amigos caindo como
meteoros
da beira dos pontilhões:
nossas falsas constelações.
já não basta de tarja preta
cartas de amor, perdões renegados
e tanta técnica
nos restarão ainda intermináveis
banhos de Coca-Cola?
será nosso corpo
essa pia entupida?
quero ajudar a soprar, Senhor,
as Tuas trombetas finais
quero nadar na rachadura
do céu impossível
vejo o deserto de São Paulo
como o mais belo castigo
Anhanguera desmata uma rodovia
em meu coração
estou só e viajo
de minha extinção
em linha reta
até o Teu abandono.
Pedro Spigolon nasceu em Araras-SP no dia 16 de Abril de 1992, sob o signo do fogo. Graduou-se bacharel em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Publicou poemas em diversas revistas virtuais e impressas como a “euOnça” e a antologia de cinco anos do Jornal RelevO. Já morreu diversas vezes nesta vida. Usa a poesia para dar corpo à sua Imaginação. “espanto” é seu primeiro livro de poesias, publicado em maio de 2015, pela editora Medita, na coleção “Galo Branco”, com financiamento do Proac.
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