21 de setembro de 2015

Da Cabula, de Allan da Rosa

Da Cabula é uma mulher sem instrução. Negra, pobre e sem muitas condições, revela em si a verdade que bem conhecemos perante este nosso país de miscigenados e que não abre espaço para a diversidade. Apesar de todos os dias o ‘debate’ sobre a miséria humana estar presente em nossas timelines, ainda sabemos muito pouco, por exemplo, do nosso ‘povo periférico’ ou de nossa própria diversidade.

Não tentamos conhecer nossas vielas, andar em nossas praças, conhecer nossas próprias entranhas, aqueles que são da mesma terra que a nossa. Quase sempre, não somos solidários a estranhos, não procuramos nos conhecer, mantemos a mínima distância necessária de qualquer que seja e fingimos, com regras pré-estabelecidas, que isso se chama ‘respeito’. Estamos sempre presentes em vias movimentadas que nos levam apenas de nossa casa ao trabalho, ou do trabalho ao shopping, esse ‘palácio’ envidraçado que nos ilude, desde os tempos em que a modernidade se pôs como centro da sociedade ‘moderna’. Somos nossas próprias vítimas, pois continuamos a dar crédito a essa extrema e pobre hierarquia social.

Tendo isso em conta, a peça “Da Cabula”, do poeta Allan da Rosa, poderia muito bem ser alvo de estudo e de pesquisa, uma vez que os estudos culturais, provavelmente, poderiam se apropriar muito bem de uma obra que diz muito através de poucas imagens. A obra em questão revela muito bem a nossa condição brasileira, a condição do negro, mas, muito além, a condição daquele que não possui condições financeiras para poder desenvolver o intelecto ou ter oportunidades em que possa viver melhor.

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Para início de conversa, Da Cabula é uma negra, analfabeta, doméstica que não sabe muito bem onde está localizada na vida. Perdida, não sabe quais caminhos rumar para conseguir objetivar seus sonhos. De início, o leitor poderá pensar que a personagem de Allan da Rosa nada mais é do que uma representação ‘banal’ daquilo que vemos todos os dias em notícias veiculadas seja na tevê seja nos jornais. Contudo, tenho que opinar e dizer que essa representação não deve ser tão desmerecida assim. A verdade é que a peça tem em seu personagem principal uma negra, e isso me faz lembrar das poucas peças pelo país em que a personagem principal é um negro. Lembro-me, obviamente circunscrita em outro contexto, da peça Mãe, de José de Alencar, um marco para o teatro brasileiro, a qual, afirmam vários críticos, teria sido a primeira a ter um personagem negro.

Da Cabula não sofre o mesmo que a personagem alencarina. Porém, ela se destaca entre os outros personagens por buscar, digamos, uma luz para si. Da Cabula é uma “pobre coitada”, como se costuma chamar, que, sem ter conhecimento das letras, tenta aprender a escrever, como se esta fosse a sua única salvação para não pegar mais o ônibus errado, para não ser enganada nas contas, para poder não ter que ouvir e ser humilhada pelo que diz seu patrão. Ela deseja, vividamente, ver o sol nascer.

Vou pro Jabaquara, vou descer a serra, que hoje vai fazer lua cheia e eu quero ver o sol desabrochar no mar!!!

Sendo negra, sem educação, Da Cabula entende que não é merecedora desta violência e deixa a casa onde trabalha. Com seu pouco dinheiro, que conseguiu juntar às duras penas, uma vez que não possuía carteira assinada, tenta, nas noites que consegue chegar até a escola, aprender o bê-á-bá para buscar ser “alguém na vida”. Contudo, seu aprendizado é interrompido pela necessidade de trabalhar.

Em pouco tempo, consegue um local para morar, uma kitinete, onde conhecendo a dona conversa sobre ter a oportunidade de um emprego melhor. A moça que deseja partir da cidade, pergunta a Da Cabula se não gostaria de comprar sua lojinha. A negra, ex-doméstica, se anima e acredita que pela primeira vez poderá chamar algo de seu. Depois, ficamos conhecendo Raimundo, que virá a ser sua amiga e vizinha de trabalho, mas não saberemos muito bem o que Da Cabula vende e isso pouco importa.

Durante alguns dias, é possível acompanhar a vida de Da Cabula e suas dificuldades, como chegar até a sala de aula, algo que vai deixando de fazer aos poucos. Mesmo assim, ela tenta, sem muita sorte, escrever uma carta ou um texto qualquer para ninguém, buscando alguma motivação para continuar viva, pois para ela já não há nada mais o que fazer.

Nas noites em que chega em casa cansada, por ter pego o ônibus errado, por não ter vendido nada durante o dia, por ter sofrido “o pão que o diabo amassou”, ela acaba por dormir, quase todas as noites, sobre o caderno com as folhas em branco. Nesse intermeio, uma entidade, chamada Flores Vermelhas, aparece e sempre lê algo que teria Da Cabula escrito. Flores Vermelhas sempre vai narrando fatos, construindo imagens e contando histórias que parecem não estar relacionadas com Da Cabula. Mas fica-se com a impressão que o que ela fala é algo que pode estar relacionado a Da Cabula ou a qualquer outra mulher que possui as mesmas dificuldades por qual a negra passa.

A peça de Alla da Rosa pode não ser novidade para quem lê, pode não cativar a leitura, mas isso ocorrerá se nós não tivermos o mínimo de respeito por essas pessoas que todos os dias são Da Cabulas, que todos os dias estão à margem, tendo sido como menores até quando retratadas na literatura. Por mais que tenhamos poucos escritores que falem das condições reais em que os brasileiros vivem, são menos ainda aqueles que põe em primeiro lugar o negro, o que também acaba dificultando mais ainda a edição de livros que tendem a ser chamar “periféricos” por tratarem de temas que são caros a todos.

Podemos, por um momento, ficar tristes porque os ‘leitores periféricos’, talvez, não terão a oportunidade de ler obras como as de da Rosa e nelas poderem se ver. O que fica, muitas vezes, em nós, que não temos tanto conhecimento dessa “margem social” que está sempre presente, é apenas aquele sentimento de que não fazemos nada ou que não podemos fazer nada, quando, no mínimo, poderíamos ler e buscar entender mais personagens-gente como Da Cabula.