18 de setembro de 2015

Quando eu li Calvino

Se um viajante, numa noite de setembro, chegasse à casa que agora eu vejo, daria de cara com uma espada. Encravada na parede, marcando a linhagem de Abraão e refletindo um cavaleiro inexistente. Se olhasse para um lado e para outro, nessa cidade que desdobra areias no tempo-espaço, o viajante conheceria trajetos cósmicos, cômicos, veria brilhar os amores difíceis e as estações na cidade. Um viajante, qualquer viajante, mas quanto mais melhor, quanto melhor, melhor, enxergaria o grande império de Kublai Khan nas palavras de Marco Polo, léguas e léguas de terras e povos e poços e avanços e cavalos e descansos e cansaços, sempre sem nunca parar. Se ouvisse Marco Polo como eu pessoalmente ouço Marco Polo falar há anos, mais de década, ouviria Marco falar pelas mãos de Italo Calvino.

E Italo Calvino entretém os entretempos, entretantos, contratempos e todos os cantos por onde já passei. Se um viajante numa noite de inverno... foi o primeiro livro de Calvino que me caiu em mãos, só Deus sabe por que, e logo depois vieram todos os outros, várias vezes, em várias traduções diferentes, de português daqui a português de Portugal, espanhol e mesmo inglês, até a última vez que folheei alguma coisa na língua-pátria do cubano: italiano.

É difícil falar de Calvino porque ele tem a última palavra sobre tudo. Por exemplo: quer saber o que pensar de um afogamento? Leia em Palomar. E sobre um monarca absolutista atado ao trono, para quem as paredes do castelo são ouvidos? Veja Sob o sol-jaguar. Quer resolver se lê Crepúsculo, assiste à Globo ou vai ler Tucídedes? Dê uma olhada em Por que ler os clássicos. Não sabe se prefere uma coisa ou prefere outra? Pergunte aO visconde partido ao meio. Cansado da vida rasa ao rés-do-chão? O barão nas árvores. Procurando o melhor lugar para morar? As cidades invisíveis. Procurando o melhor livro já escrito na História-em-si? As cidades invisíveis.

Cansado da mesmice, da dificuldade em entender as coisas, as coisas do mundo, as coisas que as pessoas andam fazendo com o mundo, confuso sobre tudo? Os nossos antepassados. Ou, para sermos otimistas como Calvino sempre foi, vale a pena aprender Seis propostas para o próximo milênio.

Nós andamos fracos das pernas, autocentrados na falta e nas faltas de nossa imaginação. Italo Calvino não. Ele trouxe e sempre traz aquilo que, num título, foi chamado Fábulas italianas. Ele traz o mundo vivo.

 

[Leandro Durazzo é tradutor, escritor e antropólogo. Mora em meio às dunas onde pensa, às vezes, ver Marco Polo perdido a esmo.]