2 de setembro de 2015

O barulho e o silêncio de Demetrios Galvão

O livro de Demetrios Galvão, Bifurcações (Editora Patuá), carrega por seus caminhos, e com suas criaturas encantadas, a força que muitos livros de poesia brasileira não conseguem criar em um poema sequer.

Bifurcações se destaca entre os demais livros de poesia brasileira contemporânea por possuir uma linguagem mais do que imagética. Com construções que nos levam a visualizar quadros quase surreais, é possível observar que cada poema foi composto de maneira detalhada e pensada; em certos momentos, lendo os poemas de Galvão, é possível lembrar de algumas telas do pintor holandês Bosch, que com criaturas amórficas ou sem coerência, e que aparentemente não dialogam entre si, criam um panorama maravilhoso e cheio de vida.

BifurcaçõesAssim são os poemas de Bifurcações. Em uma primeira leitura, se o leitor não se fizer atento terá a percepção de que os versos de Galvão são apenas como uma colagem, que de início podem não fazer o menor sentido. Contudo, os poemas vivos de Bifurcações parecem carregar a profundidade e, ao mesmo tempo, certa leveza no que o poeta pretende dizer, transpassando aquele que já é uma própria bifurcação viva: o ser humano.

Fica evidente que a linguagem utilizada no livro desafia o leitor, seja aquele que não tem tanta afeição pela poesia ou aquele que diariamente lê e escreve poesia. Os poemas de Demetrios desejam nos fazer vivos, pois diante das dúvidas da vida acabamos nos perdendo diante de nossas escolhas, seus poemas querem nos atravessar, fazendo-nos senti-los como se construíssem um diálogo singular a partir de cada “capítulo” do livro. Talvez seja justamente isso.

Foi difícil estabelecer um ponto de contato, um ponto que nos possibilitasse chegar a uma origem, com a obra, a partir das leituras que realizei. Dividido em quatro partes singulares– céu de porcelana; para uma criatura encantada; cosmologia invertebrada; ecos de uma luz distante –, mas que ainda assim, por um momento, se tocam sem se repetir, como numa espiral que desce dos céus até os nossos olhos, o livro vai criando alicerces potentes, não deixando o leitor naufragar em possíveis versos difíceis de acompanhar, como é possível encontrar, principalmente, na terceira parte, intitulada cosmologia invertebrada.

iv

 Engolir o anzol-espinha

:

o gafanhoto devora  o estômago de

deus

e

rumina tinta podre

nos lábios petrificados

.

Diante dessa incompreensão, que fingimos não entender, tentar buscar imaginar, dentro da obra de Demetrios Galvão, quem são as suas criaturas encantadas, onde estão os demônios das rochas ou querer compreender por qual razão o carteiro entregou infâncias na casa do poeta é não saber ler os seus poemas, mais do que isso, é não saber senti-los.

Assim, lendo os poemas, as bifurcações me fizeram perceber que o silêncio e o barulho podem ser criados a partir, também, do gozo, pois como bem diz o poema:

o barulho do menino assis é

o silêncio que vazou da barriga da mãe

Como se de um “ponto zero” de nossa existência estes fossem os nossos denominadores comuns. Partindo de um silêncio não ouvido pelo exterior da barriga da mãe, parte também de um barulho monumental para quem ainda não enxerga a possível realidade, preso ainda a um cordão umbilical.

Dessa maneira, nascer é bifurcar-se desde sempre. O poeta nos avisa ao som de the doors que:

Bifurcar-se é inventar

Um outro, outros...

É como se a partir de nossa experiência vivida pudéssemos, enfim, encontrar um único caminho, quando na realidade nada disso é possível, pois somos vários, mesmo que a psicologia busque afirmar uma unidade em cada um de nós. Diante disso, o que pode nos salvar é o poema, a poesia, é possível assim esticar o mundo para que possamos acreditar em nossos vários:

ainda é possível esticar o mundo com a palavra poética

 

se aliando ao balé das arrais

aos porteiros que abrem os caminhos do mundo

às armas de misericórdia dos infames

aos livreiros da diáspora

às mercearias que sediam confrarias fugazes

aos tuaregues mensageiros dos ventos-suburbanos

aos engenhos e cachaças mágicas

aos taxistas sobrenaturais que detêm a arte dos atalhos

ao cinema do oriente abandonado

às musas que habitam os labirintos da memória

aos andaimes dos cemitérios da carne

aos carteiros que espalham pontes silenciosas

às chuvas que inventam estradas aquáticas

aos jardineiros que curam e fazem partos nos canteiros

aos gatos que amaciam os recantos da cidade

aos pintores alados que enfeitam os muros

aos bem-te-vis arquitetos do assovio

às crianças que dominam gramáticas horizontais

 

... é possível esticar o mundo

Pois talvez assim seja possível esticarmos a nós e ficarmos mais flexíveis às tentações, aos pecados, ao mundo.

E as bifurcações que encontramos em nós se fazem presentes nos próprios poemas, como cada interpretação fosse uma nova vereda criada. A poesia de Galvão é alvo dela própria. Exemplo disso, provavelmente, é o poema vivo, que é quase um metapoema, que fala de si como se fosse outro:

tenho um poema vivo

que me tira o sono

e me faz demasiado humano

[...]

Foi por isso que naufraguei frente à escrita de canhoneiro de Demetrios Galvão. Foi por isso que me impossibilitei na tentativa de não morrer na beira da praia, tentando buscar de onde eu havia partido, como se quisesse saber de qual bifurcação primeira eu havia me iniciado. Quem sabe a nossa origem, nossa primeira bifurcação seja essa: o barulho e o silêncio.