As cidades dentro da cidade
Tal como numa obra de Gabriel García Márquez ou Haruki Murakami, onde as realidades são múltiplas, em camadas, constantemente interagindo e interferindo com o “mundo real”, palpável, semelhante àquele no qual vivemos, penso que essa pluralidade existe dentro de toda cidade grande onde haja uma região denominada “Centro”.
Antes assim chamado por ser o lugar dentro das metrópoles que ficavam geralmente no ponto geográfico mais próximo do centro, do coração da cidade; hoje em dia, com o crescimento à lá sangria desatada correndo solto, onde em praticamente cidade brasileira alguma existe um plano diretor que não seja desrespeitado pelo dinheiro proveniente da especulação imobiliária, fica difícil, senão impossível, situar o “centro” de uma cidade moderna, porque bem pode estar em quase qualquer ponto ou, devido ao crescimento, “ir ficando” em qualquer lugar.
Caminhar pelo centro da minha cidade também tem o retorno às memórias de infância, do tempo em que eu caminhava com meu pai por lá de mãos dadas. Ele, que me ensinou a gostar de cajuína - uma amarelinha que parece xixi - e que eu sempre tomo quando vou lá, sempre (assim como naquele tempo, ir ao centro e não tomar a cajuína não tem a mesma graça). Do tempo em que se comprava material escolar com minha mãe, indo de papelaria em papelaria, a fome doendo, e tudo que se tinha direito era a uma água mineral (almoço, só em casa). E por muito tempo, o elo das mãos dadas. No centro, mais do que em qualquer outro lugar, isso se tornava lei. A multitude de corpos indo de um lado para o outro, resvalando uns nos outros, seus diferentes cheiros, diferentes viscosidades de suor, anunciavam o risco de se perder em um dos safanões recebidos. Ou então era um deles entrar numa loja e de repente, cadê o menino? Correr o risco de tornar uma ida ao centro num deus-nos-acuda? Melhor não. E, como toda lei cumprida, havia as formas de punição, que poderiam variar desde uma olhada de olhos firmes e arregalados, até um beliscão na orelha ou uns gritos em público, quando eu ficava menor do que já era.
Mas era ali também onde eu percebia meu pai tentando fazer um vínculo comigo ou com minha irmã, e enquanto durava a afinidade, era lindo. Era uma das muitas peles do meu pai, que podia ser tantas coisas aos nossos olhos recentes para o mundo, olhos recém-nascidos, corpos tão calejados.
Era onde eu também sentia, já em criança, a ressonância que aquele lugar tinha e tem em mim, com todos os seus elementos mágicos e fantásticos.
Fora que o comércio do centro representa todo um ecossistema igualmente único. Tudo parece (e está) tão fora de lugar, tão deslocado, com arranjos tão desordenados, que a sensação que por vezes se tem é a de que vai ser difícil encontrar o que se deseja. Mas assim como no quarto de um típico adolescente, dentro do caos existe uma ordem para além do que o olho pode ver. Há ruas para tudo, que vendem de tudo, e nas calçadas, todos os tipos de objetos são vendidos em banquinhas expostas ao sol, umas mais, outras menos.
Além do comércio, aqui também tem uma questão um pouco nostálgica. Casas que resistem ao tempo, pequenas, espremidas entre uma loja e outra, residências tão antigas e de uma arquitetura tão única que parecem pertencer a um universo paralelo. Visitá-lo é como colocar um pé numa outra vida - ou, pelo menos, numa outra vivência. São verdadeiros relicários, casas tão antigas que sequer têm garagem, num tempo em que carro era coisa rara, com moradores que vez ou outra aparecem nas calçadas, com suas cabecinhas brancas e um rosto como a dizer: somos os últimos. No centrão mesmo, aí sim, entre lojas, é possível ver uma portinha que muitas vezes tem só uma escada, que leva ao prédio lá em cima, alheio aos milhares de passos ligeiros que se desviam de braços e corpos na calçada, embaixo. Prédios sujos, feios, mal-cuidados, que se tornam invisíveis para quem caminha na calçada - quase ninguém se dá ao trabalho de olhar pra cima ao caminhar no centro, preocupados que estão com as coisas que têm para resolver, e com um ou outro descuidista disposto a passar a mão no que se vier carregando.
Sem contar com outras cenas e cenários, que dão esse ar de nostalgia/antropologia/sociologia, tudo junto e revirado num contexto que só vivendo. Sempre vou ao centro de ônibus - hoje, transitar por suas ruas é um exercício de paciência - e penso mesmo que a viagem não estaria completa se eu fosse de outra maneira.
Aqui, entretanto, diferentemente de um livro de Murakami, García Márquez ou Sigizmund Krzhizhanovsky, a realidade é um livro que não se pode fechar, abatendo-se de maneiras diferentes, mais igualmente imperiosas, sobre todos.
O centro sempre será dentro de mim muitas cidades numa só. E ao mesmo tempo, é impossível não olhar para aquela região com um olhar imberbe-nostálgico, um olhar de tal ingenuidade perante o mundo como se ainda não se tivesse vindo a ele.
Que será, penso eu, do centro da cidade daqui a 30, 40, 50 anos? Continuará sendo um lugar amado e odiado pelos habitantes da cidade? Será, continuo a me perguntar, não sem um ar de tristeza, que continuará a ser olhado de esguelha pelos poderes públicos? Ainda servirá a tantas pessoas, e ainda de maneira tão precária? Ou será um “lugar do futuro”, onde o comércio se realizará de forma ordenada e as pessoas serão respeitadas e respeitarão, aguardando sua vez, respondendo uns aos outros cordialmente e caminharão sem pressa ou raiva, tão prazeroso de se estar que as mazelas do corpo e da mente serão todas deixadas parcialmente de lado, enquanto se aproveita o privilégio que é estar num lugar tão múltiplo, tão repleto e com idiossincrasias que são pura poesia, com seus parques e praças cheios de árvores e ao invés de crianças a pedir, crianças a distribuir sorrisos, cães caminhando felizes, se coçando de leve, chacoalhando a água da fonte mais próxima, enquanto gatos olham das sacadas dos apartamentos – a essa altura, restaurados – toda a admirável algazarra feita nas ruas abaixo?
Acordo do devaneio lembrando que não custa sonhar.
E é entre andanças e compras - meias, cadarços, cuecas, seriguelas, chocolates mais baratos – que se realiza a tensão dos corpos. E também o fatídico retorno ao mundo presente, mais viril e menos sensível a um olhar de ternura.