2 de julho de 2015

Ilusão e mentira, de Godofredo de Oliveira Neto

Se a oralidade é algo tão importante na história da literatura, parece-me que Godofredo de Oliveira Neto consegue fazer isso muito bem em seu último livro Ilusão e Mentira. A maneira de narrar, fundamentada nos moldes machadianos, consegue envolver o leitor, aproximando-o do mundo que ali é contado, deixando-o atento para todos detalhes que vão sendo ditos, como uma criança que fica atenta sem piscar os olhos vendo o teatro de bonecos.

As histórias de Adamastor e Lalinha são contadas por dois narradores distintos, um é web designer, quase um “lunático do circo”, que em meio às ruas se ergue sobre o estradinho de madeira para contar sua história e a do galo que falava anglicismos; o outro, um senhor de idade avançada, transcreve a gravação onde se encontra a história de Lalinha, moça jovem, de vinte e cinco anos, e que veio a cometer inúmeros delitos, uma pena ela não se lembrar de todos.

Assim é que vão se fiando as duas narrativas. Em uma, a questão da liberdade é posta à prova, o galo de luta comprado pelo web designer logo arranja uma maneira de escapulir e dizer que liberdade é “pular e voar de muro em muro, enfrentar os galos da rua, dormir onde a gente achar melhor”. Contudo, a impressão que fica é que alguns dos temas abordados na história poderiam ser mais aprofundados, afinal não é todo santo dia que temos um galo falante, poderia ele ter nos ensinado um pouco mais sobre a vida antes de ficar pairando ao redor de M. Santos como um fantasma.

 

ilusão e mentira

 

Apesar de Silviano Santiago, no prefácio do livro, querer evidenciar que existem alguns ‘paradoxos teóricos’ presentes nos contos de Godofredo – como os questionamentos que envolvem as histórias que acabam por serem escritas a partir de outras, uma vez que o livro Ilusão e mentira parece dialogar com dois textos de Machado de Assis: Ideias de canário e Dom CasmurroSabia –, o que fica, ao final, é apenas uma narrativa que possui certo humor e que parece querer ensinar como se pode dar voz ao narrador, mantendo um laço entre quem conta e quem ouve, algo que na literatura brasileira atual parece ter se perdido ultimamente, e este é um dos pontos positivos da escrita de Godofredo.

Ao final do conto, ainda temos uma segunda voz, a do narrador que dá voz a Miguel Santos, como se fosse um olho solitário no meio da multidão, e que, tendo ouvido a história do web designer, agora nos conta de maneira ‘confiável’. E, talvez, aqui esteja a valoração da maneira de narrar de Godofredo, mostrando que uma história quando é recontada acaba por ganhar outros ares, outras formas e até mesmo outros caminhos.

Daí, quando se ‘ouve’ o que Lalinha, ou melhor, Laudeliina Santos Pacheco da Costa e Souza, tem a nos dizer sobre a sua história ou histórias de amor, a pergunta que vem é por qual razão o autor busca contar as histórias através de um terceiro? Se formos até as narrativas machadianas provavelmente acharemos uma resposta. Essa mania de, aparentemente, querer estar afastado, como se não fosse o responsável pelo que é dito, jogando a responsabilidade sobre um outro, parece ser uma maneira do narrador se proteger. Mas, como se costuma dizer por aí, nenhum narrador pode ser confiável depois da existência dos narradores de Machado, portanto não podemos crer no que diz Lalinha quando começar a inventar outras histórias para as que lhe levaram até a prisão.

Teria sido ela ou não que haveria matado Val? Teria sido por amor ou não que ela teria feito o que fez? Roubo, fraude, assassinato é tudo apenas uma invenção da realidade para a vida de Lalinha ou ela é a sua própria invenção? Lalinha é uma personagem dúbia, quando se pensa que ela está sendo confiável muda totalmente o seu comportamento, chora, olha para o chão, aperta as mãos da sua ‘protetora’ como se rogasse aos céus, até mesmo sua escrita, presente no diário que pode servir como prova, evidencia uma outra faceta da criminosa, que fez tudo por amor. Parece que Lalinha, portanto, é a voz mais forte em todo o livro, a que possui uma maior profundidade.

Em todo o livro o que se nota é que há certa pressa em contar as histórias, mas isso pode ser fundamentado pelos momentos em que ocorrem, como M. Santos que conta sua história em meio a um pequeno público no meio da rua, ou como o encontro rápido entre cliente e advogado que ocorre na cadeia.

Ao final da leitura, a impressão que fica é que as histórias não são o foco do autor, mas a maneira como narrar é que a sua força predominante. A estrutura do texto é verossímil, podendo ser vista como histórias reais, que como toda e qualquer história terá os seus momentos em que a mentira será contada devido a momentos de ilusões vivenciadas pelo próprio narrador.

 

* Godofredo estará na Off FLIP (evento que corre paralelo à FLIP) hoje, às 14h, falando sobre seu romance "Menino oculto" (Record), recém-publicado na França e classificado em segundo lugar no Jabuti 2005, categoria Melhor Romance 🙂 Mais infos: http://www.paraty.com.br/flip/off_flip.asp