30 de junho de 2015

Tarde - Leitura de "Orelhas, 4", de Eucanaã Ferraz

Em uma tarde, meio que insalubre, chegou em minha caixa de e-mail uma mensagem com o título "Leia-o", seguido de um link que me levaria até o site do poeta. Eucanaã Ferraz me surgiu assim, como se fosse algo a ser provado, tateado, como se houvesse uma necessidade de senti-lo. Naquele dia, alguns poemas foram abertos e vivenciados, mas o tempo me fez o deixar, momentaneamente, de lado.

Mas sempre penso que os poemas nos buscam, assim como os livros. Cerca de um ano depois, o livro rosa, de doer a vista, parecia insistir que eu vivenciasse-o escutando-o realmente. Parei, e a partir de suas orelhas pude ouvir o que o poeta queria me dizer há tempos.

Não se pode morrer nas palavras ou nos poemas.

Assim, vivi sobre minha cama fria a possibilidade de me entender um pouco mais e de achar que eu não estava sozinho nesse mundo em que, às vezes, é tão difícil achar alguém para compartilhar qualquer coisa que seja, principalmente se houver amor.

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[Orelhas]
4.

Eu te digo que é preciso não morrer no poema;
que é preciso amar e não parar o pulso de amar
no poema; que é preciso não perder no poema
o amigo; que é preciso não temer dormir só
e nu sob os relâmpagos que estendem
seus galhos sobre o papel em que; é preciso
não mentir, e saber dizer nunca mais, porque
às vezes é preciso; deixar que o inimigo
descanse em paz aqui enquanto queimamos
a noite à procura de pão justiça e edifícios
impossíveis lábios que parecem guardar
a água exata do nosso nome ali onde;
eu te digo que é preciso aceitar o verso ruim
dar a outra face ao silêncio do poema no poema
e ver partir sem pena os verbos que sagrados
só se digam sob o teto de jamais os pronunciarmos;
é preciso deixar que no poema venha quebrar
a maré rasa das palavras ultrajadas repetidas
repisadas nos jornais nos livros nos mercados
apanhadas com o coração na boca e o engano
dos sentidos e do espírito entre os dentes; palavras
tantas vezes obras que pobres não valem a tinta
de novamente serem ditas; dizê-las, no poema;
eu te digo que é preciso perdoá-las.

(in Escuta, Companhia das Letras, 2015, p. 126)