30 de junho de 2015

Sobre a Escrita, de Stephen King

O livro é, para mim, enquanto leitor, alvo de fascinação e fetiche. Encerrado num objeto de perfeita simetria, entre suas duas capas – o invólucro do segredo – está o resultado de uma alquimia laboriosa. Se for um livro bem escrito, então, estão também densas horas de dedicação criteriosa, amor e paixão reunidos de forma bem-vinda em linhas e páginas de significativa grandiosidade.

Por essas razões, nunca fui um mero leitor de livros. Fui e sou amante deles. Da mesma forma, como tenho espírito felino, gosto de compreender os meandros das mentes que produzem obras que têm algo a dizer, ou mesmo de pessoas substanciais que resolvem escrever sobre a arte da escrita. Ler sobre o ato de escrever não é apenas envolvente, é também instigante para o leitor contumaz, aquele que tem na leitura não a fuga, mas a rota para o tesouro.

Lembro-me claramente que On writing, o livro que Stephen King escreveu sobre a arte da escrita, caiu em minhas mãos em 2001, 14 anos antes dele ser publicado no Brasil com o título de Sobre a escrita (editora Suma de Letras, 252 págs.). Era o livro que eu estava lendo – literalmente – quando ouvi alguém gritar meu nome dizendo para eu correr pra frente da TV e ver o que estava acontecendo. Com os acontecimentos daquele dia, Sobre a escrita também entrou na lista de “o que você estava fazendo quando”, que quase todo mundo tem.

Com o lançamento do livro no Brasil, não tive dúvidas de que queria relê-lo em português. Além do mais, pensei, como este livro soaria a mim tantos anos depois?

A experiência não poderia ter sido melhor.

Depois de três prefácios (sim, três) nos quais o autor fala sobre a inspiração para o livro (primeiro prefácio), sobre o tamanho do livro e uma outra obra que ele considera essencial para quem quer escrever (segundo prefácio) e no qual agradece ao seu editor (terceiro prefácio), a obra é dividida em quatro partes: Currículo, Caixa de Ferramentas, Sobre a Escrita e Sobre a Vida. Vamos a elas.

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CURRÍCULO

Aqui, Stephen King fala de si de maneira bastante informal, procurando focar-se no que o levou a escrever as coisas que ele escreve. Assim, ele “conversa” brevemente com o leitor sobre sua infância, desde suas relações com as babás, seus graves problemas de saúde neste período, sua amizade com o irmão, as primeiras leituras que fez, suas primeiras tentativas de escrever algo como forma de lidar com a realidade (e as várias cartas de rejeição que recebeu), a forma como enxergava a escola e como esse período foi importante para a sua escrita, seus primeiros empregos, a faculdade e o momento em que conheceu sua esposa, quando ainda era universitário. O autor fala também do estímulo de sua mãe, que morreu pouco antes da publicação de Carrie, a estranha (que viria a ser seu passaporte para o estrelato), e de sua dependência em álcool e drogas, vivida entre a década de 70 e 80.

Mais do que um relato autobriográfico, Stephen King busca construir um inventário de elementos que forjaram a maneira como ele enxerga o mundo e que desaguaram na sua escrita. As narrativas são entremeadas por reflexões sobre a escrita, que sempre esteve presente em sua vida. A reunião desses elementos não busca justificar o fato dele ter escrito a vida inteira sobre situações aterrorizantes (o que não é verdade, embora quase seja). Mais do que isso, ele procura ponderar sobre aquilo que nos torna quem somos, os caminhos que escolhemos e como lidamos com eles e suas consequências. E deixa bem claro que “a vida não é um suporte para a arte. É exatamente o contrário”.

 

CAIXA DE FERRAMENTAS

 Nesta segunda e rica parte, que esclarece ao leitor aspirante a escritor uma série de elementos essenciais à boa escrita, Stephen King começa contando a história de um tio carpinteiro que fazia uso de uma caixa de ferramentas com três bandejas. As duas primeiras, explica King, eram removíveis. Um primor de caixa de ferramentas, “feita à mão, é claro”. Ele conta que na gaveta de cima estavam as ferramentas mais comuns, e que um dia, ao ajudar o tio a consertar uma janela quebrada, ele levou toda a caixa de ferramentas e só precisou de uma chave de fenda. King, então com 8 ou 9 anos, perguntou ao tio por que ele havia levado toda aquela enorme e pesada caixa se só precisara de uma simples chave de fenda. “Eu não sabia se teria mais alguma coisa para fazer quando chegasse lá, não é? É melhor ter sempre as ferramentas consigo. Se não tiver, pode ser que você encontre alguma coisa inesperada e desanime”.

É a partir da caixa de ferramentas do tio que Stephen King cria a sua analogia a respeito daquilo que ele considera indissociável de qualquer bom escritor. Segundo ele, a caixa de ferramentas deve ter pelo menos quatro gavetas. E, assim como na caixa do tio, na do escritor, os itens mais usados devem estar na primeira gaveta, e nela deve constar, sem sombra de dúvida, o vocabulário. King defende a ideia de que o autor não deve fazer nenhum esforço consciente para melhorá-lo, e que jamais deverá utilizar-se dele para enfeitar o texto, que deve ser objetivo e direto.

Ainda na primeira gaveta, deve estar a gramática. Aqui, ele explica que, se você quiser escrever, tem que saber a gramática da sua língua, e isso não significa que você tem que estudar gramática. O que aprendemos de realmente significativo, explica ele, é o que aprendemos durante a leitura e a conversação, e que as aulas de gramática da época escola não são mais do que uma maneira de encher linguiça com nomenclaturas que de nada servem. É nesta parte que ele critica o uso da voz passiva e dos advérbios, que ele reitera, diversas vezes, serem exemplos de péssima escrita.

Nas gavetas seguintes ficam outros elementos de estilo, como o uso correto do parágrafo, o bom uso de verbos e substantivos e uma escrita direta, dentre outros fatores, para os quais ele sugere a leitura do livro The elements of style, de William Strunk.

O autor conclui dizendo que, apesar de estar discutindo, peremptoriamente, habilidades aprendidas, a escrita também é magia, o que significa que apenas aprender técnicas não leva ninguém muito longe se ele não souber como criar um universo que encante o leitor – ainda que sua obra não tenha um único traço de literatura fantasiosa.

SOBRE A ESCRITA

A terceira parte do livro é a que nos leva de forma mais direta para o escritório de Stephen King e para a forma como ele acredita que seja a arte da escrita propriamente dita. Um dos primeiros – e mais óbvios, embora às vezes a gente se recuse a enxergar a obviedade – conselhos que ele dá é ler muito e escrever muito. “Que eu saiba, não há como fugir dessas duas coisas, não há atalho”.

Ele afirma que quem deseja escrever precisa ler bastante. Ele não dá dicas específicas nesta parte, embora mencione alguns de seus escritores favoritos em determinadas épocas da vida. É aqui que ele fala da questão do talento, que associado à prática, lapida o escritor até que ele possa chegar no melhor de si. E que é preciso também reconhecer quando não há talento, apenas vontade, e que é importante compreender quando a vontade por si só não leva muito longe. Através da história do seu filho e de um saxofone, que ele queria muito aprender a tocar, King nos faz compreender que, embora se possa ter muita vontade de fazer algo, se em determinado momento aquilo se torna uma tortura, é porque realmente não é pra você.

King fala do seu cronograma bem definido para a dedicação ao ato da escrita – e que o aspirante à escrita deve fazer o mesmo, seja ele qual for. Ele conta que escreve duas mil palavras (algo em torno de dez páginas) por dia, todos os dias da semana, até mesmo no natal e no dia do seu aniversário; e que embora muitas delas fiquem de fora da obra final, ele precisa fazê-las: é preciso escrever à vontade, perder-se na escrita, para depois, na segunda leitura (a leitura crítica), encontrar-se. Ele também fala de como é o ambiente onde escreve, e daquilo que considera ideal como um todo – um ambiente sem barulhos e interrupções, por exemplo.

Uma das coisas que ele considera mais relevante aqui é a questão da verdade. Não importa sobre o que você escreva, seja verdadeiro, seja honesto. Embora a originalidade seja uma ilusão, se você quer ser um bom escritor, dispa-se da possibilidade de imitar alguém ou algum estilo que você gosta. Conscientemente, pelo menos.

Para ele, contos e romances dividem-se em três partes: narração, que leva a história do ponto A ao ponto B e por fim até o ponto Z; descrição, que cria uma realidade sensorial para o leitor; e diálogo, que dá vida aos personagens através do discurso. Para ele, o escritor que baseia sua obra a partir do enredo (que ele nem menciona como uma das coisas mais importantes para a história, como se percebe acima) “está propensa a ser artificial e dura”.

É também nesta terceira parte que ele trata da construção de personagens ficcionais. “O trabalho se resume a prestar atenção ao comportamento das pessoas reais à sua volta e dizer a verdade sobre o que vê”, ensina King.

O autor entremeia suas explicações com ilustrações dos próprios livros – algo que fica entre uma forma de ensinar baseando-se naquilo em que ele mesmo fez e acredita e, para os leitores mais curiosos, é também uma forma de ver os bastidores da criação Kingiana.

Por fim, o autor fala sobre a importância da revisão da obra, que nunca deve ter apenas uma única versão, e que o escritor deve ter um pequeno e seleto grupo de leitores para os quais deve mostrar sua obra, para que eles possam apontar sobre a construção dos personagens e dos panos de fundo da história. São dicas valiosas, que podem servir como força propulsora para quem estiver despertando para a escrita.

 

SOBRE A VIDA

 Nesta parte, a última do livro, King completa o ciclo, iniciado nas primeiras páginas, ao falar de seus primeiros anos de vida e dos primeiros anos na tentativa de ser publicado, até efetivamente conseguir, em meados dos anos 70. Em Sobre a vida, Stephen King fala do acidente que sofreu em 1999, quando um furgão saiu da estrada e o atropelou durante sua caminhada matinal, e de como este fato mudou não apenas sua relação com seu corpo, depois de ter estado entre a vida e a morte, como sua relação com a escrita.

Ele afirma: “A escrita não salvou minha vida [fato que ele atribui aos médicos e ao amor de sua esposa], mas continua a fazer o que sempre fez: transformar minha vida em um lugar mais iluminado e agradável”. (...) “No fim das contas, a escrita é para enriquecer a vida daqueles que leem o seu trabalho, e também para enriquecer a sua vida. A escrita serve para despertar, superar e melhorar. Para ficar feliz.” (...) “Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. E água é de graça. Então beba”.

O livro é concluído com um exemplo de uma novela que ele escreveu e que está em uma de suas coletâneas, de como era e de como ele se tornou após a revisão e, depois disso, uma seção de livros de ficção que ele leu e cuja leitura ele recomenda, embora deixe claro que são apenas livros que ele considera bons, não algo que sirva pra todo mundo.

As quatro partes da obra de King compõem um mosaico bem definido do que é, para ele, não apenas um livro com o intuito de ajudar aqueles que começam a escrever, mas também um livro de memórias sobre a arte da escrita (daí o subtítulo do livro, “A arte em memórias”). A proposta direta do livro, portanto, se divide entre falar para quem está começando a se aventurar pelos caminhos da criação ficcional e ao mesmo tempo repassar sua experiência no tocante a ela.

Você não precisa gostar de Stephen King para gostar deste livro, que é excepcional. Você sequer precisa concordar com todas as opiniões dele (eu, por exemplo, não acho que quem escreve tem que cumprir uma meta de quantidade de palavras diárias). Mas sem dúvida, você vai ficar com curiosidade para ler o autor; e se esse livro chegou às suas mãos porque você está escrevendo ou pensa em escrever, ele certamente tem algo a te dizer, ainda que você, como eu, não escreva pensando em listas de best-sellers.

Em 2003, três anos após a publicação de Sobre a escrita nos Estados Unidos, e com o livro já amplamente premiado, a National Book Foundation resolveu outorgar seu prêmio anual para Stephen King por sua “distinta contribuição para as letras” do seu país, críticos da chamada “literatura séria” torceram o nariz; mais notadamente Harold Bloom, que escreveu um artigo para o Los Angeles Times criticando severamente a decisão, por se tratar de um prêmio que antes tinha ido para autores da envergadura de Saul Bellow, Philip Roth e Arthur Miller. Em seu artigo, ele diz que o prêmio para King era “mais um golpe baixo no processo surpreendente de emburrecimento da vida cultural dos Estados Unidos”.

E com todo o respeito a Harold Bloom, o que ele disse foi profundamente infeliz, por muitos motivos. O primeiro é que os Estados Unidos são o país que mais produz um diverso caldeirão cultural no mundo. Pense em todas as formas de arte. Todas são desenvolvidas proficuamente por lá, por ser um país que proporciona um grande fomento à cultura. Natural que tenha coisas boas e ruins. Não estou falando aqui de como eles empurram sua cultura de massa para o resto do mundo, essa não é a questão. Trato aqui da produção de cultura daquele país, em todas as suas vertentes. É algo para se aplaudir. Segundo, porque Harold Bloom não tem conhecimento de cultura de massa. É um gênio, sem dúvida, mas ainda assim, possui limites quanto ao alcance daquilo que tem estofo para criticar. Sua verve extraordinária nunca se deteve sobre a cultura de massa. O que posso falar eu, açougueiro, sobre física nuclear, se nunca tiver estudado o assunto? Posso falar de carnes, dos seus cortes, origem, qualidade. E opinar sobre física nuclear, como qualquer pessoa. Vilipendiar um escritor que ele não leu e um segmento cultural que ele não gosta, apenas para reforçar aquilo em que ele acredita é um tremendo equívoco.

Stephen King, creio eu, ainda será reconhecido por sua obra para além das listas de best-seller, e estudado em ambientes acadêmicos de forma séria. Provavelmente, como um Van Gogh, depois de morto, quando nem eu nem você estivermos mais aqui para testemunhar. Mas tenho essa certeza.

Enquanto isso, se você gosta de ler e quer escrever, leia Sobre a escrita. Vale cada página da viagem. King é excelente companhia.