Ser adulto é ser uma criança bem comportada?
Diante de um mundo aparentemente cada vez mais insano, deparo-me com a notícia de que uma certa desenhista escocesa criou um livro com figuras intrincadas para colorir. Só que, ao contrário do que pensa (ou pensava) o senso-comum até então, este livro não foi feito para crianças. Já na capa se encontra a informação de que o livro é “antiestresse”. Outros carregam a informação de que são “para adultos” (quando eu era criança, essa informação significava outra coisa).
Parece-me que vivemos uma época dos retornos. Estamos cansados. Queremos – e dizemos – basta a uma série de coisas. A maioria das vezes, porém, parece que o fazemos apenas para nós mesmos, ou para nossos grupos de Whatsapp. A indignação não vai muito além dos muros virtuais.
Mas existe. Há alguns anos, surgido na Itália e depois espalhando-se pelo mundo, deram início ao movimento do slow food, em oposição ao do fast food. Ao invés de chegar e pedir pelo número, receber a comida numa bandeja dentro de caixinhas e copos hermeticamente fechados na parte de cima para evitar que um esbarrão em alguém que pode estar com ainda mais pressa que você faça com que tudo se esparrame em toda parte – inclusive sobre você mesmo, que tem que estar de volta no escritório em quarenta minutos e não pode se dar a estes riscos porque não tem uma camisa extra no porta-malas do carro – a ideia é que você faça “como antigamente”: você senta à mesa com as pessoas com as quais está, recebe um cardápio de um garçom, escolhe o que vai querer entre uma conversa e outra, passa o pedido ao garçom, que por sua vez o passa à cozinha, que o prepara, depois serve em porções, coloca em uma bandeja que o garçom pega para levar até você, que por sua vez coloca a comida no prato e, conversando com seus amigos, parentes ou cônjuge, saboreia algo que não estava pronto sobre um equipamento de metal, recebendo um vapor quente para fazer de conta que acabou de sair do preparo. Parece cansativo, demorado? Pois para os adeptos da comida apressada, saibam: é assim que se comia “antigamente”.
Aliás, muito antes disso, havia o “comer em família”, que não raro, implicava em ver a mãe, tia ou avó pegar os ingredientes no mercadinho perto de casa – isso quando não tinham em seus próprios quintais – preparar tudo desde o começo, enquanto outras pessoas se aproximavam e faziam daquele momento uma grande reunião e um momento de convívio ímpar, ajudando-se mutuamente, até que a comida finalmente ficasse pronta e fossem, juntos, comer, praticamente ao pé do fogão.
O que nos levou a o que nos tornamos hoje, esses trogloditas em busca de dinheiro e de bens materiais?
Veja a nossa relação com animais de estimação. Na escalada do preço do custo de vida, aliado a outros fatores, como o questionamento da religião, que antes impunha culpa aos casais que não quisessem ter filhos, e ao próprio ritmo dos pais em potencial, que hoje querem valorizar não apenas as suas carreiras, mas a si próprios, e optam por não tê-los, observamos um número crescente de famílias compostas por seres humanos adultos e animais. E o que ocorre, em muitos casos, é uma humanização do animal para além do compreensível. Ou você nunca viu no Facebook – isso para citar apenas um exemplo – aqueles seus contatos que compram roupas para seus bichos de estimação, que fazem festa de aniversário – com direito a bolo e convidados – que usam uma linguagem tatibitate para se referirem aos seus “filhos”?
Assim, ver a sociedade ensandecidamente colorindo livros não é de admirar. Não chegamos ao cúmulo da infantilização do ser humano diante de uma realidade horrenda. Chegamos a esta febre quase digna de uma histeria coletiva porque precisamos de algo que nos desligue deste mundo tal como ele se encontra. Há alguns anos, se você viesse com um livro de colorir para algum amigo ou amiga seu numa mão e uma caixa de lápis de cor na outra, dizendo que era para ele ou ela colorir, ele riria na sua cara (ou, se tivesse menos intimidade, agradeceria com um sorriso constrangido como a dizer, “Você está louco”) e fatalmente entregaria para o próprio filho ou filho do parente mais próximo.
Hoje em dia, subitamente, comportamentos tido como pueris no passado não só são amplamente aceitos como replicados.
Basta a gente pensar nas hoje chamadas selfies. Antigamente, todo mundo tirava foto de si mesmo, pelas mais diversas razões, e isso nem tinha nome. Agora, não só batizamos o ato como o reproduzimos a todo instante, elevando-o a um status que antes não existia. É o narcisismo exacerbado que leva à solidão e à loucura. Ficamos obcecados por nossa própria figura – e esquecemos do universo ao nosso redor.
Vivemos numa época em que temos que ter tanto foco para “vencer na vida”, – o que quer que isso signifique – precisamos tanto demonstrar que somos concursados, que temos dinheiro para comprar coisas que nos dignifiquem perante um certo grupo social, gastamos tanta energia para conquistar coisas e mostrar o que temos e fazemos em redes sociais, que estamos ficando exaustos dessas obrigações. Ter um livro de colorir que nos tire os olhos da tela de um celular, para dá-la a algo mais subjetivo, como a pintura de desenhos intrincados, parece ser uma quebra na maluquice que é este caos pós-moderno.
Estamos, então, nos infantilizando, ou voltando àquilo que gostaríamos de ser? Estamos nos tornando crianças bem-comportadas num casamento repleto de convidados chatos? No fundo, não é essa uma tentativa de mostrar que podemos, sim, voltar ao mais anterior de nós mesmos, aos nossos primórdios, a tudo aquilo que antecede o nosso estar no mundo atual, ao que há de mais ancestral em nós, para sermos uma outra coisa, e a atitude massificada de colorir livros não demonstra que, se quisermos, nos voltamos para nós mesmos, sem precisarmos de uma exposição maçiça ao Outro, que nos consome, nos desgasta e nos esgota? Não seria este um grito do ser humano pedindo socorro ao próprio ser humano, ou ao que nos resta dele, talvez?
A mente humana está claramente dando um tilte. O próximo passo, parece-me, é que vamos apertar o botão reset em nossas próprias cabeças. E quando voltarmos a adentrar no que sobrou de nossas florestas para caçar, quando vivermos em espaços de paus e pedras novamente, quando voltarmos a escrever através de garranchos e desenharmos no chão ou em cavernas, aí sim, talvez, seja a hora de recomeçar e tentar fazer tudo diferente.