13 de junho de 2015

A Bela Helena de Miriam Mambrini

Em 1999, Talita, a protagonista do novo livro de Miriam Mambrini, A Bela Helena (Editora 7 Letras), reflete sobre seus cinquenta e nove anos. Sua reflexão, um vaivém no tempo, é um depositário de memórias, que ela compara a uma “rede de pesca cheia de rombos por onde os peixes escapavam”.

A velhice e a decadência associadas a ela são o fio condutor do esforço de Talita em, escrevendo como se “lancetasse um furúnculo”, resgatar seus dias de infância e de juventude à luz dos atuais. Ela não busca fazer propriamente um balanço, mas uma espécie de aquecimento para entrar e aceitar o início de fato da velhice, os sessenta anos, que virão em breve. O mergulho por intermédio da escrita é o jeito de Talita encarar sua trajetória sem medo.

Entre a década de 1940 e o ano 2000, a condição feminina sofreu abalos: a mulher avançou sobre o mundo do trabalho, queimou sutiãs, tornou-se dona de si. Talita não é uma militante, todavia, no rescaldo de tantas mudanças, nenhuma mulher foi mais a mesma. Talita, por exemplo, tornou-se alguém cujo desejo não se conformou em alcançar, na linha da vontade materna, uma modesta sensação de segurança. Apesar de contemporâneas, mãe e filha viveram mundos distintos e inconciliáveis.

A bela Helena_capa final

É bom que se conheça um pouco da história de Zenaide, a mãe. Talita é filha de um acaso, melhor, de um golpe. O sonho da mãe sempre foi casar para se ver livre do mundo espartano no qual vivia. Um homem rico lhe alteraria o destino, dar-lhe-ia o conforto sonhado. Assim, a gravidez inesperada foi usada numa tentativa de agarrar Sílvio, aparentemente bem situado, pelos pés. Sem sucesso.

Filha de um golpe frustrado e pressionada pelos valores da mãe, Talita se vê obrigada a jogar (contra a sorte, contra o destino); sua vida é isso. Deixada, na infância, na casa dos avós paternos, que nem sabiam de sua existência, caiu do céu numa família em cacarecos. O pai, incapaz de assumir a filha, e a tia, vaidosa, filhos mimados por um velho secarrão, o avô César, e por uma velha amorosa, a avó Edith. O amor da avó com certeza salvou Talita — principalmente quando se viu obrigada a conviver com a frouxidão moral da mãe, ao voltar a morar com ela. Esse amor nutriu a neta e sustentou-a vida afora.

Talita teve de se pôr de pé no chão escorregadio que ganhou de presente de suas circunstâncias. A adolescência a transformou em uma bela mulher e moldou toda sua frágil herança em inquietude, inquietude essa que a empurrou para a aventura da nova mulher que começava a tomar forma. Ela não iria se curvar à soberania masculina nem abrir mão de suas certezas (mesmo que frágeis) por conta de algum conforto. Não é com leveza que ela avança, ao contrário, a cada tombo, Talita se vê mais longe de conquistar o amor e tudo que se espera dele: a satisfação sexual, a completude pessoal de cada um dos parceiros, a solidificação da família com a chegada de filhos. O preço maior pago por ela é a perda do filho, que o pai leva para viver longe dela e do Brasil. O espectro de um filho é o que sobra para Talita depois de seu gesto de insubordinação e torna-se, assim, a danação com a qual ela terá de conviver. Ante a possibilidade de matar-se, Talita preferirá um atalho, uma fuga. Usará, nesse momento, Helena como disfarce. Disfarce não, esteio.

Dois casamentos com homens ricos ficam pelo caminho. O fim do primeiro sem grandes implicações, a não ser a censura de Zenaide — que olha tudo a partir da cobiça. O fim do segundo, custando-lhe o filho e a mãe, seria o maior golpe que sofreria. Haveria ainda um terceiro casamento, um sopro suave na vida afetiva de Talita. Esse amor menos corpóreo fez com que ela descobrisse que podem ser próximos o amor vindo de um homem e o vindo de uma avó. No momento em que escreve suas memórias claudicantes, à porta do novo e profeticamente malvisto milênio, Talita é viúva de Eugênio, tem uma vida confortável e, ainda que distante, mantém contato com o filho. Alguma reconstrução foi possível.

Contada assim a um possível leitor do livro de Miriam, a vida de Talita pode parecer atribulada, mas não muito diferente de outras tantas, de muitas mulheres para as quais toda a reviravolta no mundo feminino não significou grandes reviravoltas na própria vida. Não foi assim. Depois do primeiro casamento, Talita passa a relacionar-se com Laerte, um homem com o qual não se casaria; um homem que, direta ou indiretamente, seria responsável pelo seu afastamento do filho. Um homem obcecado por ela desde que — ele adolescente, ela criança — a viu num dia em que presenciou o atropelamento de uma senhora em Copacabana. Um homem, enfim, encoberto em mistério que não se revelará totalmente, nem ao leitor nem à Talita. Com esse homem, presente hoje, ausente amanhã — chegada e saída nunca avisadas com antecedência —, Talita se aproxima daquilo que deve ser o amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem. Com Laerte, Talita não é a moça dos anos 1950, mas a mulher pós-1960, a que não vira as costas ao prazer e sabe que esse amor pode se firmar apenas com um encontro aqui, outro ali: árvore de raiz superficial. Talvez o Mário Quintana impresso na epígrafe do livro seja a chave para compreender a relação de Laerte e Talita. Diz o poeta: “Nada jamais continua, tudo vai recomeçar”.

Talita gostaria de se chamar Helena. No grande embate que trava com seus valores, com a vida, com tudo, Helena toma corpo. Num primeiro momento, Helena compra um vestido. E é tudo, um nome dito a uma vendedora. Depois do fracasso trágico do segundo casamento, Helena sobrepõe-se a Talita e é a mulher que vive a insurgência da vida dos que, à custa de muita bebida e encontros sexuais inconsequentes, estão na noite, buscando sabe-se lá o quê. Helena é a porção de mulher que, no meio de revoluções femininas e feministas, não é uma prostituta, mas aquela que dissocia o amor do sexo. Essa Helena não toma de vez o lugar de Talita, pois Talita ressurge no seu terceiro casamento. E será novamente Talita quem, nas páginas finais, reencontrará Laerte.

Miriam Mambrini, experiente escritora, nesse A Bela Helena faz de uma história crível, realista, tão parecida com muitas passadas ao nosso lado, um panorama da condição feminina na última metade do século XX. Esse é o grande mérito do livro, que, embalado numa narrativa arejada e sóbria, faz de Talita uma personagem que, à medida que a conhecemos, nos conquista a ponto de nos jogarmos à vida com ela. Miriam — autora do instigante Ninguém é feliz no paraíso (Editora Bom Texto), livro no qual acompanha muito de perto um personagem masculino —, ao virar seus olhos para Talita, que de vez em quando é Helena, mostra que, de fato, seja escrevendo na perspectiva masculina, seja na feminina, é uma observadora atenciosa de nossos dias. No caso desse romance, o olhar mantém em foco extensos sessenta anos, tempo suficiente para o mundo, em particular o da mulher, ter virado de cabeça para baixo.

 

Alexandre Brandão Escritor mineiro que vive no Rio de Janeiro, é autor de Qual é, solidão? (Oito e Meio), No Osso: crônicas selecionadas (Cais Pharoux), entre outros. Escreve na revista eletrônica de crônicas Rubem (rubem.wordpress.com).