Quando eu li Antonio Carlos Viana
Sempre me intrigou a forma como certos escritores chegam até seus leitores. Os caminhos podem ser muitos, esdrúxulos e tortuosos, cômicos, intrigantes, ou triviais, como um livro recebido de presente, ou a sugestão que você aceita de um amigo – aí você vai na livraria/sebo e compra o livro, sem nenhum evento no caminho que o torne digno de nota.
Antonio Carlos Viana é desses escritores quase secretos. E conhecê-lo é algo como ter em sua casa um quadro famoso roubado: um segredo apenas para os seus olhos e os de mais uns poucos outros, que seguramente compactuam com a clandestinidade do que veem e fazem. Sergipano por nascimento, mostra-se universal através de sua escrita capaz de estremecer as fundações de um leitor mais experimentado, com temas que reverberam dentro daquilo a que chamamos de nossa “humanidade” – a que habita em cada um de nós.
Minha relação com a obra deste escritor começou de maneira improvável: através do filho dele, que eu também não conhecia.
Antonio Carlos Viana nasceu para mim através do seu filho, André Viana, que por sua vez nasceu para mim por obra do acaso, quando, ao perscrutar as prateleiras de uma livraria, seu romance, O doente, me chamou. Li rapidamente um excerto que vinha na quarta capa do livro, e fui imediatamente invadido pela sensação de que estava diante de algo completamente novo na literatura brasileira. Completamente bonito, forte, grandiloquente. E estava. Levei o livro para casa e o li em duas sentadas – só não o li mais rapidamente porque eu queria deixar o impacto das palavras de André Viana assentarem em mim – e também porque eu queria economizar o livro, que é curto.
Completamente arrebatado, procurei saber sobre o autor. Foi quando uma entrevista recente dele me chegou aos olhos, e nela, ele instava seus leitores a lerem os livros de seu pai. E assim foi que, caminhando pela terceira década de vida, vi um escritor de quase setenta nascer para meu olhar imberbe, e adentrar minha alma milenar.
Em quase sete décadas de vida, Antonio Carlos Viana publicou pouco. Até agora, seis livros de contos, sendo que um deles é um apanhado com o melhor dos dois primeiros. Para mim, leitor atento, porém voraz, é pouco.
Recomendaram que eu começasse fazendo o caminho inverso, do mais recente para trás. Na ocasião, o mais recente era o Cine Privê, de 2009. Comprei-o, em estado de novo, num sebo. Peguei o pacote com o porteiro, enrolado num papel que lembrava aqueles papéis de enrolar pão de antigamente. Não sei se vocês compartilham desse sentimento, mas, algumas vezes, quando eu pego num exemplar do livro, leio sua orelha, observo os detalhes da capa, leio alguns parágrafos a esmo, já sei se vou gostar ou não. Não me perguntem de onde vem isso, mas eu sei que a sensação existe – não com todo livro, mas acontece com alguns. E foi exatamente o que me aconteceu com Cine Privê.
Quando eu abri o livro, recostado em vários travesseiros, confortavelmente deitado, descobri-me diante de um mundo que não me deixava quieto. No universo de Antonio Carlos Viana cabe toda a nossa humanidade, com tudo de bom e ruim a que isso tem direito. As descobertas e os medos da infância, o medo do sexo, as transformações e a implacabilidade do tempo, a crueldade que faz parte de nós em qualquer fase da vida – está tudo lá, contado de uma maneira irretocável.
Antonio Carlos Viana é da escola dos exímios contadores de histórias. Suas tramas têm personagens com nomes, um começo e um fim bem definidos, o que não significa que são fechados, impossibilitando que o leitor busque preencher os espaços vazios com suas próprias peças; são ligados por um desenvolvimento da trama e da essência dos personagens que nos faz terminar um conto dele com a sensação de que fomos, de alguma maneira, em algum nível, chacoalhados. Mais: revirados, transformados.
Eu segurava o volume de Cine Privê com firmeza, olhos grudados na página, corpo se retesando e se esticando sobre a cama, ora deitado, ora sentado, resultado da inquietação que as histórias me causavam, histórias estas de uma delicadeza que tocam a alma, mas sem o final feliz por muitos desejado. Antonio Carlos Viana, às vezes com humor, dor e crueldade, mostra o esfacelamento inevitável dos sonhos, da vida, da passagem do tempo. E, no entanto, não é uma literatura amarga.
É uma literatura para ser amada.
Adélia Prado foi quem disse que “o que a memória ama fica eterno”.
E a obra de Antonio Carlos Viana é exatamente isso: memorável, inesquecível, imperecível. Lê-lo pela primeira vez é ter a certeza de que o levaremos para sempre na lembrança e no coração, enquanto, a duras penas, caminhamos, rumo à eternidade, ou ao nada mais.