Da arte das armadilhas ou uma tentativa vã de explicação
Em Da arte das armadilhas, de Ana Martis Marques, é possível apreender que somos no corpo do outro a armadilha necessária para que a arte da vida possa se manter precisamente. Como todas as arapucas propõem um momento de tensão, onde caça se vê desafiada pelo caçador, a arte de AMM propõe, em seus poemas, que “há desilusão/ mas não há/ fuga” em nossas vidas. Sempre cairemos em uma armadilha, até mesmo o caçador, que deveria ser o sábio da história, em algum instante, se verá “preso à presa”.
O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente
Inaudível
o mundo
aciona o fecho
da flor
Há desilusão
mas não há
fuga
O caçador está preso
à presa
(da arte das armadilhas)
Este livro, que é o segundo de Ana, é fácil perceber, é a armadilha criada para o leitor. Somos a caça que será devorada pela leitura dos interiores dos objetos que se espalham dentro de uma casa ou em um livro. É através dos açucareiros, dos talheres, das cômodas que iremos partir com o navio que se faz imóvel dentro da garrafa na estante, sem nos importarmos quantos somos ou em quantos nos tornamos quando multiplicados pelos cacos do espelho quebrado ao chão. O que deveria importar é o tempo, mas quando se está a criar armadilhas, em que o necessário para a sobrevivência depende da isca e da sapiência do caçador para sobreviver, o tempo, provavelmente, não será o importante, mas a paciência de poder distinguir apenas quando é dia ou noite.
Nos cacos
do espelho
quebrado
você se multiplica
há um de
você
em cada
canto
repetido
em cada
caco
Por que
quebrá-
-lo
seria
azar?
(espelho)
E o nosso caçador parece se importar apenas em estar cercado de armadilhas irremediáveis, pois o amor está à solta, e sabe que está em uma posição contínua que o põe como caça também. E sua única defesa parece ser a linguagem que inventa, sua última defesa. Com o amor à volta tudo será mais perigoso.
A linguagem
sem cessar
arma
armadilhas
O amor
sem cessar
arma
armadilhas
Resta saber
se as armadilhas
são as mesmas
Mas como sabê-lo
se somos nós as presas?
Mesmo que haja certa dúvida, inventiva, ao surgir desta pergunta, prefiro acreditar que elas – as armadilhas – são as mesmas sendo diferentes, e não é necessário que isso se explique. A linguagem não explica o amor, mas o tenta conceber de maneira plausível, mesmo não conseguindo, para que os nossos corpos possam estar em outros.
Assim, é necessário, talvez, que com essas armadilhas nos seja provável descobrir o mundo sem quedas, e que possamos ter em nossas mãos todo o excessivo que nos banha a vida. E que apesar dessa busca é necessário que se tenha todo o cuidado de não se perder na tentação da isca, pois o amor é um bicho sabido, utiliza ele da mesma linguagem que o caçador.
E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?
A pressa
da presa
em
perder-se
(caçada)
Assim, esse mundo permeado de arapucas, notamos ser quase impossível alcançar o outro com palavras
Procuro alcançar-te
com palavras
com palavras
conhecer-te
(a descoberta do mundo)
E não sendo isso possível, “seguiremos alegres e tristes/ cheios de pensamentos/ até o topo da cabeça”.
Se há certa dificuldade em estar no outro com as palavras e seus significados, como então ousar explicar a linguagem que é armada por AMM? Como pensar em tentar designar sentimentos ou adjetivações linguísticas que são vazias ao tentar explicar o que se passa com os poemas criados tanto em A vida submarina (Scriptum, 2009), primeiro livro da poeta, quanto em Da arte das armadilhas? Como, em vã tentativa de resenhar um livro, se perder tão fácil assim?
Será que através do sonho de Ícaro, de tentar alcançar o sol, será concebível entender que não somos incompatíveis com as palavras e que a poesia tem de ser lida e não explicada a todo instante?
devemos
porém
deixar
de insistir
pois se até
Ícaro
caiu
em si
(ícarao (1))
Por quais motivos continuamos a persistir em explicar o que não se põe em palavras? O caçador sabe que isso não deve acontecer, mesmo assim continua a insistir. Mas enquanto isso ocorre sabe ele que não haverá nada “para amortecer/ a queda”. Todas as suas tentativas serão em vão, todas as alternativas que conhece serão usadas, todos os jogos e armadilhas utilizadas o farão estar preso a si, à caça. E não haverá lugar algum em que poderá comemorar sua festa se vier a conseguir apreender o amor em si, não haverá com quem repartir o que sente através do significado da linguagem que irá construir. Assim, em algum momento, o crítico desistirá?
Tudo está definitivamente perdido.
Da arte das armadilhas, criadas por Ana Martins Marques, não possibilita, nem deve suster em si, nenhuma explicação. E toda a intenção aqui circunscrita nesse texto é apenas consequência do que fiz hoje
pensar
despir-me
duas coisas
que eu fiz
hoje
as roupas
ficaram
pelo chão
os pensamentos,
não