Doía na alma
Doía na alma, na barriga e em todo o resto do corpo. Zé Raimundo tomava mais uma dose de cachaça para aliviar e dizia para colocar na conta dele. Nonato apenas olhou para Zé e cuspiu no chão. Os dois sabiam que naquela noite o mundo acabaria, então tanto faz a cachaça ser fiado, afinal o amanhã não existirá, para quê dinheiro?
A notícia se espalhou rapidamente por toda a cidade, não era boato e nem imaginação de seu ninguém, era verdade, todos os canais de televisão davam a notícia, o mundo iria acabar amanhã.
Eles – todos os moradores da cidadezinha – espalhavam-se de medo e pavor na praça, o professor no centro falava algumas coisas, ele era formado em Filosofia e o chamavam de louco, mas dessa vez foi necessário prestar muito atenção em todas as suas palavras por acreditar que ele poderia salvá-los de alguma maneira, a prática superava a teoria.
Bem da verdade, a terra não tinha muita salvação, não. Os especialistas na televisão diziam que uma auto explosão iria acontecer e noventa e cinco por cento do planeta morreria. Não era bem a terra que iria morrer, ela ainda sobreviveria precariamente, mas certamente toda aquela cidade morreria, então para eles o mundo acabaria mesmo, definitivamente.
O padre benzia quem podia, tinha choro, reza e tudo o mais. Todo mundo se converteu ao catolicismo, talvez o Vaticano tenha ficado feliz por um momento, a cidade toda agora era seguidora do Papa.
A cidadezinha ficava no meio do nada, lá onde Judas perdeu as botas e o Satanás nem aparece com medo de não encontrar ninguém. Pouco mais de duzentas pessoas forneciam informações sobre suas vidas uns aos outros. Todos os postos eram bem fornecidos de profissões e hierarquias. A inveja e as tramas eram diárias, assim como uma organização que nenhuma outra cidade tinha. Tudo no seu devido lugar, parecia Estocolmo, mas de fato era o cu do mundo.
De noite todos choravam, a união era enorme na hora da morte que assustava o espectador privilegiado, o professor que não tinha ninguém, apenas estava de passagem, estágio do governo. Ele observava tudo aquilo percebendo que na hora da morte não existia hierarquia, posição social ou riqueza. Se de fato existia algo que o dinheiro não comprava era a salvação da terra, aliás, foi graças ao grande acúmulo de capitais que a terra estava daquele jeito, e aquele jeito era que a terra tinha para dizer ‘chega, acabou’.
No dia seguinte, tudo ainda estava no seu devido lugar. As televisões relatavam que era tudo um grande engano, o mundo não iria auto explodir, na verdade foi um erro de um funcionário que ouviu um boato de dois engenheiros que escutaram uma conversa de um chefe que estava falando no telefone com seu superior de manhã por causa do fuso horário diferente em Sidney e um tanto sonolento ouviu de dois turistas chineses que a terra poderia auto explodir segundo um estudo de um árabe que falava esperanto e mandarim e tinha aprendido a fazer previsões através da sua ex-namorada norueguesa que tinha passado uma temporada em Õma por causa do ex-namorado dela que tinha traido-a com uma paraguaia que estava de férias em Oslo para um doutorado sobre Henrik Ibsen.
Resumindo, a culpa de tudo isso era de Ibsen por ter existido e feito uma peça chamada ‘Um inimigo do povo’ que cativou essa paraguaia desde sua adolescência, resultando em sua ida a Oslo que culminou numa festa sexta-feira treze em que três vodkas foram suficientes para transar com o ex-namorado dessa Noruguesa no ano de dois mil e vinte do calendário bizantino.
Todos choravam de alegria, alguns ameaçavam processar – Quem? Mas no fundo agradeciam muito por ainda estarem vivos. Uma semana depois, todos esqueciam que a terra poderia acabar, os suicídios foram finalmente contabilizados, por volta de dois bilhões de pessoas. Os outros vivos se perguntavam sobre esse número assustador, entederam enfim depois de mais duas semanas de reflexão que eles achavam melhor morrer por si do que em outra circunstânceas. Foi por medo.
O mundo continuava do jeito de sempre. Três anos, seis, vinte passaram desde então, o professor agora era doutor e dava aulas em Amsterdã. Sua bicicletava travou estranhamente numa manhã de domingo enquanto ia a padaria. Admirou as explosões que aconteciam pela cidade, tudo era muito confuso e apenas o caos reinava. Todos corriam, menos ele. Ao olhar tanto sorriu e entendeu que vinte anos atrás algo ou alguém, um Deus ou um deus cósmico havia noticiado tal tragédia. Achava que se não fosse isso, certamente seriam extraterrestres que tentaram o último meio de comunicação conosco ao saberem sobre a verdadeira condição do planeta.
Ouviam-se preces, reza, choro. Entendeu que fosse na cidadezinha ou então na cidade mais moderna do mundo, não havia diferença em tudo isso. São todos humanos, têm medo da morte, suplicam até o fim. A capital da Holanda tornou-se religiosa por breves dois minutos. O mundo acabou tão rápido e vivemos tão pouco, que geração infeliz. O fogo consumia, nada estava no lugar, o professor sentou e esperou a morte lenta e dolorosa através das chamas do inferno que brotavam da terra, e foi assim que ele finalmente entendeu o motivo de dois bilhões de pessoas terem se matado há vinte anos atrás.