Quando eu li Nelson Rodrigues
Confesso, ele não foi o primeiro. Antes dele, outros e outras. Mas ele era o proibido. Acho que foi por isso que despertou meu desejo, por ser aquele que eu não podia ter. Sabia que havia nele algo que eu procurava e não sabia ao certo o que era. Tinham me dito: ele não, ele não é para o tipo de menina que você é. Quem sabia que tipo de menina que eu era? Nem eu sabia quem eu era, como podiam saber de mim? Eu sabia sim dos meus desejos e um deles era ele. Os que vieram antes dele eram algo infantil, imaturo, sei lá, algum nome dessas coisas que a gente não sabe definir bem. Mas na verdade o que eu não sabia definir bem era o meu interesse por ele. Diziam que ele tinha coisas que as meninas não podiam saber. Esse é o tipo de coisa que se diz quando se quer que alguém tenha o interesse por aquilo que se proíbe. Esse assunto me dá uma vontade de um cigarro bem agora, mas acabei de lembrar que não fumo mais. Cigarro também é uma coisa que as meninas que acham que eu sou não podem ou desejam, mas elas podem querer e desejar sim! Palavra complicada é essa: desejo. É uma coisa que se sente e não se sabe como vem, mas se pressente como vai embora. O meu iria embora com ele, se deixassem que ele chegasse nas minhas mãos. Eu queria tanto. Imaginava tanto...
Foi bem assim que eu o conheci, quando o proibido era realmente proibido. Falar agora, em pleno século XXI de algo que seja proibido parece ficção, mas houve um tempo que as coisas não eram tão fáceis como são hoje. Esse tempo, que não foi dos piores, pois os anos de chumbo já findavam, foi o tempo que eu o conheci. Conheci não, ouvia falar dele. Um escritor que não era recomendado pras moças, pelo menos era o que dizia minha mãe. Eu era quase uma menina. Final da adolescência, uns dezesseis, dezessete anos talvez. Passei minha infância e minha adolescência no período da ditadura militar. É estranho não ter a glória dos que lutaram pela liberdade, mas sabia dos nãos impostos pelo regime. Muitas outras coisas eu não sabia, porque em uma ditadura a coisa que mais se sabe é o que não se sabe. Parece confuso, só que os tempos dos nãos são cruéis. Eles apenas negam e ponto final. E ele não era recomendado para moças. Já não era tão “proibido” quanto antes, mas, segundo o infindável repertório de vetos de minha mãe, não era o tipo de leitura adequado para uma menina, moça ou mulher. Outra coisa importante de lembrar: para as mulheres nem sempre foi como é hoje. Era um tempo obscuro onde quem amava matava e os desejos das mulheres ainda estavam sendo descobertos nas terras tupiniquins. E falo por experiência própria. Tinha as que contestavam, as que lutavam e as que eram preservadas. Eu fazia parte dessa última classificação. Era preservada de qualquer coisa. Não há mal pior do que ser preservada. A leitura era a minha forma de libertação, ainda que meus pais não percebessem isso. Eu era uma devoradora de livros e mais um pedido literário havia sido feito. Eu queria ler Meu destino é pecar. Houve um certo constrangimento. Como essa menina vai ler Nelson Rodrigues? Mas é leitura, mãe, eu argumentava. E, após alguma insistência, o anjo pornográfico foi liberado para mim.
O livro era imenso em relação ao número de páginas. Quando se é adolescente números são importantes. E aquele era o maior que eu já tinha lido. A capa branca com o desenho de um casal prestes a se beijar remetia a um filme antigo. Minhas tardes eram tediosas no início da década de 80. Almoço, praia, Atari. O que me divertia eram as leituras. Passava horas e horas mergulhada nos livros. Eu tinha certeza que aquele seria especial. E foi. Ser seduzida por palavras é um prazer desmedido, porque as palavras libertam a imaginação. E Nelson, naquele livro, foi menos pornográfico do que eu esperava e mais intenso do que eu previa. A narrativa me segurou por alguns dias. Gostaria que tivesse durado mais tempo, queria ter economizado as páginas para prolongar o prazer da leitura, mas sou voraz, quando o banquete me apetece. E ele saciou minha vontade.
Confesso, os nãos eram tantos que imaginava algo mais perverso. Ou quem sabe minha perversidade não era tão pequena quanto imaginavam. No entanto as palavras do anjo chuparam meus olhos pras páginas daquele livro com tanta força que eu não conseguia desgrudar dele. A narrativa era intensa, novelística, segurava a atenção do leitor. Cada cena se extinguia na expectativa da que viria a seguir. Não havia meias palavras. Era uma invasão de sensações que tomava o papel e se apoderava do meu imaginário. Sensações, sim. Era um livro que mexia com os sentidos. Nelson Rodrigues não é um autor pra ser lido só com os olhos e a mente. Ele desperta sensações físicas, desperta a vontade do porvir. Nelson desvenda o inconsciente de uma maneira cotidiana, como se lesse os pensamentos de cada um de nós, até e principalmente os mais obscuros. Todos nós moramos nos personagens dele. Somos filhos do anjo sem nos darmos conta disso. Quem nunca desejou o proibido? Quem nunca teve um segredo irrevelável? Quem nunca se despiu de pudores para amar? Nelson despe o comum. Suas histórias se parecem com qualquer história rotineira. Até a página dois, porque o que vem depois é uma avalanche de mundos secretos que são desvelados de forma nua e crua. A vida é assim e pronto, sem filtros.
Ainda como parte das minhas confissões, desejei ser como o anjo. Desejei escrever como ele, penetrando no universo obscuro do desejo e das sombras disfarçadas. A hipocrisia da sociedade é trabalhada dramaticamente em seus textos e eu queria isso para mim. Como num teatro, as cenas vão se sucedendo a ponto de enredar o leitor completamente. Nelson convence por ser real, por mais estranho e bizarro que isso possa parecer. Na obra dele somos as noivas, as falsa pudicas, as putas enrustidas. Na obra dele podemos ser todas as mulheres de Nelson sem a vergonha de sê-las.
Depois dessa primeira experiência com ele, vieram outras, em outros formatos. Contos, crônicas, filmes, séries de TV. Foi interessante ver como a narrativa dele era transposta para a tela e como os personagens ganhavam a cara de atores e atrizes conhecidos. Minha preferência, no entanto, repousa no deleite das palavras de Nelson e nos enredos que transitam tranquilamente pelos labirintos reais e perversos da condição humana. Ler é um prazer inigualável. Ler Nelson Rodrigues é olhar pelo buraco da fechadura da vida real.