9 de abril de 2015

Televisão e finitude

Um acontecimento ainda por vir e já ocorrido? Certa personagem – Da Guia (uma confidente) – do romance Telenovela (2014), de Mauricio Salles Vasconcelos, se abisma logo na primeira página do livro: “– Nós duas nos sentamos aqui e conversamos por cima do que passa na TV. Todas as noites. A gente se reunia. Olha, já estou falando em passado, e aconteceu ainda agora” (p. 9). A escrita orbitará em torno desse aparelho que jamais se desliga, rastreador de um presente impossível, no compasso do trabalho infinito da morte da médium-vidente Mãe Sara.

A narrativa deambula por um site delirante formado por tecnologia de imagem e luto, onde se hospeda, com certa familiaridade estranha, de inquilino, o telespectador tal como o drogado Avelino/Aranha, um dos filhos de Sara, ao lado de sua irmã, Aurora, uma professora de Literatura Comparada dedicada aos estudos da cultura tecnoglobal. A tevê – especialmente a telenovela Capital de Emoções, acompanhada por Mãe Sara no instante de seu falecimento – reúne todos de volta à casa, num culto em que a própria noção de casa, como espaço privativo, vai ser destruída. Cedo ou tarde isso aconteceria, uma vez que a linguagem habita o desabrigo-mundo. Mesmo o formato “livro” talvez já contivesse, virtualmente, esse modelo cada vez mais atual (propenso) e “desfilhado” de escrita – o telemático, o eletrônico –  que veio suplantá-lo sem que para isso fosse necessário seu desaparecimento. Pois o livro (desde Mallarmé, Blanchot e Derrida), é sabido, contém uma tensão insolúvel. Transporta a antinomia extremamente indissolúvel morte/vida; diz-se: agrega pela dispersão, seu fim é interminável, embora subsista do enfrentamento do seu próprio fim.

Nesse segundo romance de Mauricio Salles Vasconcelos (o primeiro, Ela não fuma mais maconha, foi publicado em 2011), o legado televisual ressoa como matéria e memória (poderia acrescentar Bergson, em suas apreensões da temporalidade) de uma vida, como algo que escapa a todo tipo de fixação subjetiva e objetiva. Uma singularização – portanto, sem começo nem fim, nascida de um repertório cotidiano, multimediado – que tem a ver com uma consciência imediata? Pois é dtelenovelae modo telegráfico que uma mensagem se desprende e se presentifica, suspensiva, entre parênteses durante o luto dos narradores: “(Tudo o que mãe cantava vinha direto de sua vida, uma espécie de composição do momento presente, sem mais autoria)” (p. 12) Será preciso atravessar a morte da mãe, de toda e qualquer mãe, num canto sacrificial inefável, para que a escrita continue: “De repente, nossa vida ganha um sentido, com essa voz ao fundo” (Id.).

Uma história popular, comum, é contada com primor na Telenovela de Mauricio. Ela se confunde com muitas histórias. Não por ser porta-voz universal, representante de particularidades constituintes de um presente, mas porque ali a escrita alcança certa indiscernibilidade ideal entre ficção e testemunho. A literatura, neste romance, se plasma sobre um campo transcendental e irradia, extravasa em diversos plots enquanto na TV é transmitida, ininterruptamente, uma novela global, interativa, permeando toda a trama narrativa. Seu título parece enfatizar o que há de mais sinuosamente afectual: Capital de emoções.

Trata-se de uma escrita sobre a(s) história(s) do cinema e da tevê, sobre fluxos disseminados de uma fábrica de sonhos, segundo a acepção criadora de Godard, transpassando a vida de uma pequena família. De uma telenovela elaborada em contiguidade à tessitura dos dias, mas que acaba por repercutir como indagação e levantamento de uma topografia sutil acerca de relevos invisíveis da própria ficcionalidade em curso, em problematização.

A cada vez a escrita ficcional de MSV se articula, ainda mais, por excesso de contração/difusão, a linhas subterrâneas da literatura brasileira. É o que se pode ler desde os anos 1960 alcançando nossa contemporaneidade, em projetos contagiados por rádio, cinema, tv – todo um universo áudio-visual impressivo nas produções que vão de Samuel Rawet, José Agrippino de Paula a João Gilberto Noll.

O romance se encena a partir das ondas propagadas por um mundo satelizado (mundo-ovo, segundo apreende Deleuze em Artaud, dramatizado por ruptura e recomeço original). Um “passeio fora do mapa de homenagens e referendamentos” (p. 147), por uma América Latina Global, é o que se realiza,   em  consonância  com  o  ensaísta  uruguaio  Hugo  Achugar,   em Planetas sem boca, citado por Vasconcelos quando da viagem do personagem Aurora ao México.

Talvez, seja efetuado um travelling ainda inédito disso que é uma marca contínua e sem vestígios no mundo: a literatura, em sua deriva imperceptível pela noite-satélite da cultura mundializada. Nesse sentido, o chamado “folhetim eletrônico” tomado como eixo da ficção produz uma órbita pela qual a narrativa extrai seu vigor numa gradação maximal.

Telenovela se mostra capaz de levar tanto à paródia quanto a um sentido cosmopóetico em espiral o efeito de redundância e serialização emitido pelas telas domésticas. Tem o poder de arrebatar-nos enquanto leitores à volta do acontecimento tão reiterado quanto surpreendente a envolver finitude, globalidade, vida brasileira e escrita, à luz do continuum novelesco televisivo.

 

*Tiago Cfer é Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP)