21 de março de 2015

O hábito, o monge e a Playboy

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São, por certo, curiosos os caminhos que a literatura brasileira tem tomado (e tudo que é inerente a ela, exempli gratia, as instituições encarregadas de laureá-la, e seu “mercado consumidor” – se é que o termo faz justiça àquilo que nomeia). No caso das supracitadas instituições, vemos cada vez mais polêmicas proliferarem, por força de lobbys escusos ou de critérios mais extra-literários que estéticos; já no que toca a um suposto “mercado”, qualquer comentário é dispensável, pelo risível estado atual do cenário (embora um dado novo – o corporativismo e o escambo lisonjeiro – seja algo a se temer, pelo bem do real valor das produções artísticas que surgem em ritmo acelerado, muito em função do trabalho obstinado de editoras independentes que revelam novos talentos, além de revisitar escritores já tarimbados).

Mas talvez essas premiações e as estratégias de se criar um “mercado suplementar” nem sejam tão importantes assim; diante de medidas governamentais pífias para fomento à leitura, e outras vanidades, talvez o melhor caminho ainda seja confiar no leitor nacional instruído (porque ainda os há), amante desinteressado da leitura, seja nacional ou não.

Veja-se o caso do escritor botucatuense Mafra Carbonieri. Temos aqui um escritor de grande erudição, dotado de uma lírica cujo tom se opõe ao provinciano, de carreira que perfaz oito décadas, com mais de dez livros, alguns dos quais laureados por prêmios como o da Accademia Internazionale Castiglione de Sicília, ou o prêmio Casa de Las Américas de Cuba, além do Redescoberta da Literatura Brasileira, da Revista Cult (como este último soa simbólico a nossos ouvidos!), além da recente nomeação para a Academia Paulista de Letras; não obstante, quantos leitores nacionais (no cômputo mais abrangente possível) terão ouvido falar desse poeta e romancista, ou de alguns dos heterônimos que criou, como Orso Cremonesi ou Malavota Casadei?

Seja como for, a presente resenha não objetiva dar resposta a essas questões, e careceria de competência acaso o quisesse. Diante das anomalias culturais das quais nosso país é pródigo, o caminho mais sensato é avaliar a obra, discutindo seus méritos ou deméritos (porque uma leitura assim, predicado de um reduzido círculo de leitores, é em si uma láurea ao artista, no país de leituras pré-concebidas).

O verso e a alcova

A obra mais recente de Carbonieri, Diálogos e Sermões, leva a assinatura formal de mais uma persona lírica. O autor tem se mostrado pródigo em elaborar perfis singulares, e o caso presente não é exceção: temos em frei Eusébio do Amor Perfeito um Arentino de batina, irmão de uma ordem composta de escritores célebres e telúricos, para quem o desfrute da carne (no mais amplo sentido) constitui mais um dos sacramentos sacerdotais.

Figura inusitada esse frei, provocadora e irônica (ainda mais quando contraposta à figura austera que ilustra essa edição de sua obra, aos cuidados da editora Reformatório, como sempre num projeto gráfico esmerado). O inusitado vem do hábito que detém, não obstante seu modus vivendi:

 

“Teu corpo é um templo onde todos entram

Eu o contemplo do lado de dentro”

 

O modelo é Gregório de Matos, presença que perpassa o livro, formal e tematicamente, mas a impressão aqui é mais forte porque afinal Gregório havia abandonado o hábito, constituindo-se um típico homem barroco.

Frei Eusébio envereda por diferente filosofia: ele manifesta uma alegria pagã, seja quando se refestela na glutonaria:

 

“Daninho é o porco na Sagrada Ceia

Porém, por que deixá-lo para os outros?

Caio de borco. Por Santa Maria.”

 

Ou no deleite de outra carne:

 

“Bela. Conspícuo chupo o vosso buço.

Conspícuo chupo o vosso buço, Bela”.

 

O barroquismo se faz presente, em outras palavras, enquanto atitude estética (como atestam, além do quiasmo na formatação dos versos acima, os versos de sintaxe inversa, as antíteses e jogos de imagens que unem o sacro e o profano), mas não há a contrição (ao menos a que não seja retórica) ou o temor da danação eterna:

 

“Se eu tiver que ir aos infernos,

Seja nos invernos, meu e do tempo”.

 

Ou:

 

“Senhor. Estou perdido.

Não sei o caminho do inferno.

Tenho a vocação do pecador.

Não a do arrependido.”

 

Porque essa alegria pagã inverte os valores entre o secular e o espiritual, simpatizando mais com o largo caminho do primeiro, onde se lê “Camões como se Bíblia fosse”, e ouve-se “Um salmo de Davi e um soul”. Haveria de se estranhar que nesse âmbito pudesse se deparar “Dentro da cela” monástica com o “ensaio da Playboy”? É que essa ordem é diversa da que tradicionalmente conhecemos. Nela, a arte (no caso literária) é o fundamento sacramental; vem dela os votos a que professam, dentre outros, Rimbaud, Shakespeare, Edgar Alan Poe, Paulo Bonfim etc., todos “reverendos” homenageados no livro em poemas que, em sua maioria, mimetizam sutilmente o requinte de suas obras (vide o poema inicial, que dialoga com o célebre soneto “Vogais”, de Rimbaud, ou o dedicado a Shakespeare, que parece dialogar com o sublime soneto 121 “Tis better to be vile than vile esteemed”); todos reverendos, como o são frei Anselmo do Silêncio Cauto, frei Laudelino do Cio Pio, e outros oriundos do engenho do autor.

Mas retomando à justaposição de elementos opostos, ela evolui a certa altura em neologismos de igual natureza, tais como “bocetáculo”, “pernângulo” etc. Em suma, é como se extirpasse do Barroco toda angústia e repressão, em prol de uma verdadeira conciliação de contrários.

E do que tratam esses Diálogos e Sermões? Por entre sarcasmo, ironia e licenciosidade, frei Eusébio investe contra a política composta de “Ratos eleitos pelos roedores” (“Sermão da Amarga Renúncia”); achincalha a própria hipocrisia religiosa, que por força de se institucionalizar, míngua a experiência espiritual com o “mistério” (o belo e expressivo “Sermão das Quadras e Uma Ladainha”); e, por fim, aborda a relação amorosa, essencialmente em seu viés erótico e libertino, numa curiosa inversão de poderes (“Dos poderosos um humilde aio/eu fui o vosso rei. A nossa lei”). Dessas três temáticas ainda há variações, onde cabe o olhar autoirônico do autor que é, ele próprio, representante do universo contra o qual investe (as “Notas Para o Sermão do Dinheiro”, por exemplo).

Tudo isso expresso num estilo de economia vocabular cabralina, inclusive com uso constante de dísticos e, ocasionalmente, de rimas toantes. A métrica também é presente, embora não elida o verso-livre, mormente usado nos poemas encomiásticos (quando o estilo do autor homenageado assim o requer).

Concluindo, os Diálogos e Sermões de frei Eusébio do Amor Perfeito é obra concisa, de fibra, embora talvez não seja (bem consideradas as restrições morais de alguns leitores) uma obra para todos. O caminho da sátira é capcioso, sobretudo quando resvala no terreno religioso. Entretanto, mesmo aí é possível olhar a obra com outros olhos, enxergando-a como audaz instrumento de crítica contra as “razões sociais” que extorquem os desfavorecidos, ou que adulteram hipocritamente o indivíduo, por força de ditames que visam reprimir seus instintos mais naturais e básicos.

E repressão não é bem, para esse frei, um mote digno de um sermão.

 

*Clayton de Souza é escritor,  autor do livro Contos Juvenistas (editora Patuá) e colaborador do Jornal Rascunho. Atualmente trabalha na produção de seu primeiro livro de poemas, Versos de Imprecação Contra o Mundo, em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Reside em São Paulo.