Os Rebeldes – Geração Beat e Anarquismo Místico
Este estudo de Claudio Willer, autor brasileiro nascido em 1940, e com vasto trabalho na área da criação e da tradução poética, merece o melhor cuidado. Não se trata tanto de seguir aqui um tema contemporâneo que pode atrair ou até magnetizar a atenção dum público culto, mas de apreciar a subtileza, a habilidade e a qualidade das indicações que no livro se dão.
Por muito que a Geração Beat constitua um nó de grande significado na criação das últimas décadas, apresentando-se como uma das principais vias que actualizou junto de nós o melhor legado literário moderno de origem franco-inglesa, Blake, Withman, Rimbaud e o surrealismo, e até por muito que o autor deste livro se mostre um conhecedor dos recantos, mesmo os mais ignotos, das obras dos fundadores do movimento, não é a Geração Beat que faz o interesse do trabalho de Willer. Se fosse esta geração a fazer o valor do livro, não passaria ele duma monografia ilustrativa, cujo único valor estaria no seu exterior.
Não é o caso deste livro, que, além do informado serviço que presta sobre uma geração que criou as suas obras na segunda metade do século XX, tem uma espessura própria. É desta que vale pois cuidar em qualquer recensão que se faça ao livro. Será sempre curto admirar neste trabalho do autor o rico volume de informação que nos presta sobre a biografia final de Allen Ginsberg ou de Gregory Corso, ou até as leituras que faz de certos segmentos textuais, como por exemplo a hilariante e atractiva abordagem que faz do tópico da comida na prosa narrativa de Jack Kerouac (v. pp. 130-136).
Aquilo que faz o merecimento dalguns livros tidos por úteis nos estudos literários, e até por bons, revela-se aqui insuficiente. Este estudo de Claudio Willer é muito mais do que a vida escrita duma geração e das suas obras mais significativas. Tem um fio próprio, que ganha autonomia no exercício de leitura, acabando por ser um valor em si.
Que fio é esse, pergunta o leitor? Não esquecemos que este livro tem um título geral, Os Rebeldes, que pode historiar uma multidão de personagens, e dois pontos de apoio, Geração Beat e anarquismo místico. A Geração Beat é a referência real, concreta, ao objecto de estudo, enquanto o anarquismo místico é a noção criativa original, que estica o livro para lá das suas fronteiras. É pois nesta última noção que reside a espessura própria do livro, a sua originalidade estruturante.
A noção de anarquismo místico não pertence porém a Claudio Willer. A ideia dum anarquismo místico, por contraste com outros géneros, é recente e decorre dum ensaio, hoje clássico, de Norman Cohn, The Pursuit of Millenium (1957; 1979). O trabalho de Cohn não é de conceptualização; o seu objectivo é descrever pormenorizadamente algumas das principais heresias cristãs medievais. É apenas na conclusão do estudo que ele torna patente a existência dum anarquismo místico, capaz de cobrir movimentos tão diversos como amaurianos, begardos, joaquimitas, franciscanos espirituais, anabaptistas, ranters e outros.
A singularidade de Claudio Willer está em ter ido buscar esta noção, que tem passado despercebida, para a cruzar com uma geração poética. Não se trata apenas de reconhecer a importância que as ideias religiosas tiveram na Geração Beat, desde os modelos bíblicos originais que Ginseberg começou por decalcar nas invectivas de Howl (1956) até ao papel do budismo na poesia de Gary Snyder, mas em encontrar a chave certa, que permita abrir a porta de acesso ao discurso compreensivo, tornando-o em si iluminante.
Claudio Willer já nos tinha dado um estudo vizinho deste, Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e a Poesia Moderna (2010), que foi a sua dissertação de doutoramento na Universidade de São Paulo. O gnosticismo irrompeu na história das ideias religiosas no momento da formação original do cristianismo. Momentos houve em que a fronteira das duas culturas foi indistinta, como é o caso de Orígenes (185-254). Depois, com a rejeição do maniqueísmo por Agostinho de Hipona (354-430), as duas correntes seguiram caminhos distintos. Uma faz-se instituição poderosa e imperial; a outra, cultura minoritária, acossada, perseguida, que se refugiará em formas irreconhecíveis de alteridade para poder sobreviver. A poesia moderna será, segundo Claudio Willer, a mais significativa delas.
Desta vez, no novo estudo sobre a criação poética da Geração Beat, são as heresias milenaristas que irromperam nas franjas da cultura europeia antes da modernidade filosófica ter substituído os cenários do imaginário social, arredando de vez a cultura religiosa, que se tornam o elo perdido que permite iluminar toda uma cartografia contemporânea que doutro modo ficaria muito mais inacessível e esbatida. A luz que aqui ilumina vem de fora, duma esfera inovadora, que coube ao autor explorar e trazer até junto de nós.
Estes dois estudos de Claudio Willer são para ler em conjunto e pertencem a uma área discreta dos estudos literários, mas muito profícua, se tivermos em conta os resultados dos trabalhos de autores como Denis Saurat e Denis de Rougemont, em que a filosofia e a história da religião ajudam a pôr a nu o núcleo irradiante que brilha no centro da criação poética.
por António Cândido Franco
NOTA DA REDAÇÃO: António Cândido Franco é um dos principais poetas e ensaístas contemporâneos de Portugal. Professor na Universidade de Évora, autor de Estâncias reunidas: 1977-2002, poesia (coleção “Finita melancolia” das Quasi Edições), e de ensaios seminais como Poesia oculta, (Lisboa: Vega, 1996) e O Surrealismo Português e Teixeira de Pascoaes (São Paulo: Escrituras Editora, 2013), além de obras sobre História de Portugal, dirige A Ideia – revista de cultura libertária, na qual tem preparado edições dedicadas ao surrealismo português,
*Esse texto foi publicado originalmente na extinta revista eletrônica MusaRara