19 de fevereiro de 2015

Esquerda X Direita: um debate intracraniano

Os desabafos públicos têm se polarizado cada vez mais, causando mal-entendidos e distorções de ambas as partes. Tenho sentido falta de imaginação e noção de alteridade nesses discursos, por isso sugiro aqui um exercício: considerar as diferenças ideológicas como uma discussão entre dois hemisférios de um mesmo cérebro. A proposta ficará mais clara ao longo do debate intracraniano, onde o leitor poderá testar suas próprias convicções.

No corpo caloso, os dois hemisférios, direito e esquerdo, discutem com fervor:

– As coisas que se passam no hemisfério esquerdo não passam de sonho! As crenças podem parecer bonitas, mas só nas sinapses, como o delírio de uma criança que salta da cobertura de um prédio, acreditando com toda força que é um super-herói.

– O hemisfério direito é completamente alienado! Quando tem dinheiro pode ser apenas cruel, mas o pior é pertencer à classe média e defender o sistema capitalista: uma contradição bizarra como a de um negro racista. Faz aliança com os inimigos e jamais entende que não tem muito a ganhar.

– Ao contrário do esquerdista, que tem minhoca na cabeça, eu prezo pela liberdade. Acredito que cada um pode conquistar aquilo que almeja, desde que trabalhe por isso.

– A ala direita ou é cínica ou não aprendeu a usar os neurônios. Sabemos muito bem que as pessoas que mais ralam estão condenadas a uma vida inteira de salário de fome. Os ricos não lucram por trabalhar mais, e sim por passar em cima dos outros, explorando o suor alheio. Quase metade da riqueza mundial pertence a menos de cem indivíduos: como é possível dizer que essa concentração corresponde ao mérito?

– Detesto concordar, preciso me policiar para deixar claras nossas fronteiras. Admito que haja excessos no topo da pirâmide, mas por que isso justificaria indulgência com o andar de baixo? Que sociedade podemos construir se os vagabundos recebem benefícios, em vez de os impostos darem retorno a quem contribui? Que exemplo acéfalo é esse?

– Os ricos são os que menos pagam imposto no Brasil, sonegadores inveterados que são. Se pensassem com cabeça mais aberta entenderiam que concentrar investimentos para os mais pobres, a longo prazo, propicia uma vida mais confortável para eles também. A melhor maneira de diminuir a criminalidade, para que possamos andar mais tranquilos pelas ruas, é dar perspectivas reais a quem menos tem.

– Miolo mole! Desde quando esmola é perspectiva?

– Cabeça oca! É fácil falar, quando nós contamos com a ajuda de uma família razoavelmente bem estruturada, comida garantida na mesa, apoio para estudar e uma força para começar a vida adulta. Anos mais tarde, encontramos nossos caminhos, mas precisamos desse empurrão inicial. Não é tão diferente com os programas sociais.

– Tudo isso não passa de uma manobra eleitoreira, uma compra de votos disfarçada. Só com lavagem cerebral para pensar que um governo de esquerda se importa mesmo com as pessoas. Você acredita demais na bondade humana, é muito ingênuo. Acorde, ninguém é bonzinho nesse mundo, nem você, nem ninguém. Melhor cada um por si, quem quer prosperar que trabalhe, quem não quer, que tome pressão.

– Não precisamos entrar na questão da bondade. Se a sensibilidade não é teu forte, azar, mas você deveria ao menos usar melhor a razão. É muita burrice desse teu lado achar tão tranquilo o descaso pelos oprimidos. Nunca passa pelos teus axônios que esse “que se dane” tende a gerar revide? O revide é instintivo, é básico, é inevitável. Você apoia um tratamento desumano para os desfavorecidos e fica surpreso que eles não queiram sempre defender os TEUS interesses, em vez dos deles. Não vê nenhum problema aí?

– Não são apenas meus os interesses. Você que não percebe o quanto está superada a divisão de classes. Você dá voltas e mais voltas pela massa cinzenta para se convencer do sentimento de união dos pobres contra os ricos, mas o que todo favelado quer é um carrão importado. Eu ajo exatamente como eles fariam se tivessem a chance.

– Talvez uma parcela da população, porque o sistema capitalista estimula acima de tudo essa parte do cérebro que se contenta com brinquedinhos e prazeres supérfluos. As empresas lucram mais se as pessoas se esquecem de pensar na coletividade, se dão uma importância exagerada ao acúmulo individual. Muita gente acha que liberdade se resume a escolher o que comprar, mas isso é efeito de manipulação.

– Vocês esquerdofrênicos tentam alegar que nada do que ocorre sob o capitalismo é libertário. A liberação sexual, por exemplo, teve um enorme propulsor no apelo ao consumo, um estimulo para que as pessoas se soltassem mais. O capital faz com que sejamos mais nós mesmos, em vez de coagidos por doutrinas utópicas. Aliás, quem é contra a competição comete o absurdo de ser contra a lógica da natureza.

– Darwin se revira no túmulo... Você acha mesmo que tua mentalidade é bem adaptada e evoluída? A biologia não justifica essa competição econômica acirrada que temos visto. A essa altura nada pode ser mais estúpido que prosseguir nos níveis atuais de produção e consumo, que estão desequilibrando o ecossistema em escala global. Estamos matando o planeta e ninguém dá importância, porque destruímos ao som de jingles alegres.

– A esquerda desmiolada acusa como se não tivesse também seus ímpetos destrutivos. Diz que a sociedade capitalista é agressiva dos pés à cabeça, mas não acho que Stalin tenha primado pela gentileza. O que eu realmente não engulo é esse ar de superioridade moral de militantes que achariam muito revolucionário me exterminar, só porque tenho outro ponto de vista.

– Talvez seja por causa da nossa proximidade física, mas eu não poderia pertencer a esse tipo de esquerda. Apesar de tudo, não gostaria de lidar com o vazio ao meu lado após uma lobotomia tão drástica, em que a direita fosse extirpada à força. O stalinismo foi um grande erro à esquerda, como o nazismo foi o caso extremo da direita. Mas o capitalismo é responsável por muito mais mortes e abusos do que qualquer tentativa socialista, e isso em seu procedimento “normal”. Você faz questão de não registrar as informações que não te interessam: acho que não vai querer colocar na conta nem as periferias latinas nem a África, vai?

– Já que você admitiu que existem erros à esquerda, o que me diz da corrupção? Ou vai dizer que é tudo intriga da oposição? Você bate cabeça quando se ilude que a esquerda no poder é a mesma que no discurso; é tão difícil entender que na prática ela é bem diferente?

– Parece que todos os direitopatas têm um problema cognitivo de atenção seletiva. Muito antes de qualquer governo de esquerda chegar ao poder, a corrupção já tinha se tornado epidêmica, o que aconteceu após séculos de domínio burguês. Julgamentos podem ser tendenciosos, e a grande mídia também colabora para disfarçar muita coisa. No fundo você sabe que as empresas para quem presta serviço e as que você financia com o cartão de crédito realizam operações ilegais o tempo todo, mas para você tudo bem, já está habituado, é como as coisas funcionam.

– Não entendo o que te impele a estragar tantos prazeres! Por que não podemos simplesmente relaxar e curtir a vida? Por que você não fica aí no teu canto, no teu lugar, sem me importunar?

– O que você quer não se sustenta, além de covarde é suicida. Tua falta de percepção provoca dor de cabeça!

 

por Ivan Hegen

nasceu em São Paulo, em 1980. Formou-se em Artes Plásticas e faz mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Publicou A Grande Incógnita, Será, Puro Enquanto, Rock Book (org) e A Lâmina que Fere Chronos.

*Esse texto foi publicado originalmente na extinta revista eletrônica MusaRara