6 de fevereiro de 2015

NONATO, CAPÍTULO 3

3.

Já era meia-noite quando Nonato pegou o corujão até o terminal de ônibus. Com o dinheiro emprestado por Diana, conseguiu comprar uma coxinha, sem refrigerante. Comeu sozinho num grande banco de concreto, assistindo às idas e vindas dos passageiros noturnos.

Moradores de rua. Garotos vestindo preto que voltavam de alguma festa. Mulheres vestindo curto que procuravam alguma festa para ir. Casais, operadores de telemarketing, funcionários de bairros distantes. O barulho da conversa subia até o teto alto e voltava para Nonato, os ecos e risos transformados em ruído, por sua vez misturado ao sono, por sua vez misturado ao nada. Queria fazer xixi, mas o banheiro era pago.

Por alguns segundos, pensou em ligar para a mãe e avisar que ela não se preocupasse. Então, precisou lembrar a si mesmo porque estava ali, deitado no concreto frio ainda com as roupas do dia anterior. Estava ali porque ela nunca mais se preocuparia e ele não teria porque ligar.

Mas isso foi depois.

***

Antes:

Sentado no meio-fio, Nonato contou o troco do ônibus. Não queria voltar para casa, se é que havia alguma para voltar. Mas, como ele havia descoberto, tristeza não enche barriga. Estava sujo, fedorento e faminto, exausto de tanto não chorar.

- Oi, meu bem.

Nonato ignorou o chamado.

- Vai querer alguma coisa hoje?

Ele levantou os olhos, não sem irritação. Uma travesti o observava da esquina. Parecia uma mulher, os peitos redondos e muito empinados enfiados num corsete apertado. Um shortinho mais apertado ainda cobrindo as coxas como uma segunda pele. Era linda, mas, Nonato sabia, se fosse mesmo uma mulher linda, não teria nada que fazer ali, numa esquina esquecida na beira da avenida.

- Ei, tô falando com você. O gato comeu sua língua?

- Não.

- Oi?

- Não comeu minha língua. Não quero nada.

Ela mudou a bolsa de ombro, ainda observando com atenção.

- Que foi que houve? Te assaltaram?

Nonato percebeu a si mesmo sentado no meio fio, ainda vestindo com o uniforme da empresa, suado e em desalinho. Mesmo assim, um uniforme. Ele era um negro bem vestido. A logomarca de seu Fernando na camisa Polo era uma insígnia que o tirava da categoria de assaltante e o colocava, sem gentileza, na de assaltado.

- Não. Me roubaram nada não.

Os faróis esparsos salpicavam a noite de amarelo.

- Você consegue me ver? – Ele perguntou.

- Tá frescando com a minha cara?

- Não, eu tô... Desculpa.

Ela se aproximou alguns passos.

- Que foi que houve?

- Uma merda aí. Sai andando, nem sei onde é que eu tô.

- Jura?

***

Diana (o nome dela era Diana) entendia de sair andando sem saber para onde. Foi exatamente assim que ela chegou a Fortaleza, três anos atrás, vinda de uma cidade pequena demais para ter nome, pertinho de Feiticeiro. Desde criança, queria fugir para Salvador, mas, de malas prontas, decidiu sair do estado. Para garantir.

No começo, quando ainda se chamava Antônio, tentou trabalhar onde pudesse ser mais ela que Feiticeiro. Vendeu roupa por um tempo num lugar onde podia passar o dia com gel no cabelo e não precisava usar computador. Era bom, mas logo deixou de ser para virar pouco.

Foi assim que Diana deixou de ser Antônio:

Às seis e quarenta chegou em casa. Ronald, seu namorado com quem dividia apartamento, estava na cama com outra mulher. A mulher em questão, Cirlene, era famosa por ser fácil e só transar com torcedores do Fortaleza. Antônio nunca tinha visto outra mulher que não sua mãe nua e a visão de Cirlene rastejando para sair debaixo de seu homem ficou marcada para sempre em sua memória. Ronald disse alguma coisa, mas ele não ouviu, concentrado no púbis depilado da outra.

Sem uma palavra, Diana saiu de casa. Foi direto à casa de um amigo e pediu para passar a noite. Depois, foi ao banco e tirou o pouco que havia conseguido poupar do salário. Em seguida, voltou ao apartamento de Ronald, esbarrando em Cirlene na escada. Bateu na mulher até achar justo, arrumou suas malas e nunca mais voltou, para lá ou para a loja. Se tivesse ficado, matava.

***

Nonato ainda não sabia que gostava de beijar Diana. Diana ainda não sabia que, semanas depois, estaria vagando pelas ruas de Fortaleza procurando por Nonato, enquanto o mesmo sangrava até a inconsciência num beco deserto.

Essas eram apenas duas entre as muitas coisas que ainda não sabiam. Algumas delas permaneceriam assim para sempre.

***

- Como é teu nome?

- Nonato. O teu?

- Diana.

Diana arrumou os seios no corpete e voltou para a esquina. Um carro buzinou, o grito inteligível do motorista se perdendo no ar.

- Será que você podia... me emprestar dois reais?

- Só se você pagar de volta.

Ele sorriu.

- Tá certo.

Mas isso foi antes, quando ele sorria.

***

Depois:

A noite no terminal era amarelada. Toda vez que fechava os olhos, Nonato sentia perder o equilíbrio. Como se ainda andasse, um pé atrás do outro, para lugar nenhum. Mesmo deitado, sentindo o concreto duro contra a nuca, sentia como caminhasse. Não parecia haver outra opção.

Tudo aquilo acontecera de verdade? Sua mãe, sua casa, Diana. Nonato levantou aos primeiros raios do sol, as pernas doloridas de ficar na mesma posição. Não dormira, mas também não havia se movido. Tinha medo de que um movimento em falso o fizesse cair para o alto. Pegou o primeiro ônibus para casa. Era quase como se a noite decidisse levar tudo com ela. Novos trabalhadores subiam no coletivo, cheirando a desodorante. Crianças diferentes saíam para a escola. Um motorista que antes não existia se preparava para o trânsito das sete horas, que nunca acontecera antes.

Apenas Nonato permanecia, uma relíquia suja de outra época. Invisível, intangível, anacrônico, inaceitável em sua camisa Polo. Sentia as mãos suadas e o pescoço preguento da falta de banho. Por dentro, mesma coisa. O avesso salgado e pegajoso, como se todo ele derretesse de insônia. Foi sentado numa cadeira preferencial, com as mãos apertadas entre as pernas para evitar que tremessem.

***

Em seu íntimo, ele esperava a mesma cena da noite anterior: a multidão no meio da rua, as viaturas estacionadas, os policiais sem pesar nenhum. Mas, à luz do dia, restava apenas sua casa. Que estranho que ninguém pudesse ver, que ninguém soubesse o que aconteceu só olhando para ela. Como se faltasse alguma coisa, uma parte da parede caída em ruína ou a TV anunciando que aqui houve morte e perda. O que havia era o mais profundo silêncio. Ou, pior ainda, os sons que compunham o silêncio de seu cotidiano. Um sertanejo abafado vindo da vizinha. O caminhão entregando areia no depósito. As bicicletas. Era inexplicável que alguém pensasse em varrer a casa com a morte tão próxima.

Nonato abriu a porta devagar e entrou em casa. Alguns segundos depois, voltou correndo, alcançou a rua e descobriu que era invisível.