[O prazer de] ser cronista
Ainda numa idade muito tenra, lá pelos 9 ou 10 anos, comecei a inventar histórias que tinham como pano de fundo a realidade que eu vivia, mil vezes piorada. Se eu tinha uma professora de matemática da qual não gostava, assim como não gostava da disciplina, então imediatamente eu criava uma professora de matemática que assassinava alunos nas horas vagas, e por aí vai.
Claro que isso era uma forma de lidar com a questão quando aparentemente nenhum outro recurso (dialogar com os pais, amigos, irmãos, talvez) me parecia suficiente. Ou simplesmente fruto de uma mente hipercriativa. Mal sabia eu que décadas depois isso ia ter um nome [autoficção], que não é outra coisa senão a capacidade de escrever sobre seu próprio umbigo.
Naquela época, me identificando cada vez mais com o universo das letras, eu achava que seria escritor, e como já gostava de criar, inventar, estava seguro que caminharia pelo universo da ficção. Tornei-me professor, por convicção, e embora a escrita seja parte inerente a mim, tornei-me escritor porque as circunstâncias me foram favoráveis. Mas não nos adiantemos.
O tempo passou e eu continuei vivo. As mudanças vieram de todas as formas: no corpo, na forma de pensar, na forma de administrar amores e amizades. Só uma coisa não mudou: a minha criticidade. Quer dizer, é bom acreditar que me tornei um crítico melhor, baseando-me em argumentos e não apenas em pré-julgamentos tolos, como fazia numa adolescência típica em muitos sentidos. E assim minha verve criativa foi sendo horizontalizada, moldada. As leituras, sempre elas, me mostraram outros caminhos, e como se fosse parte da minha natureza, voltei às minhas origens enquanto leitor: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta. Profundamente tocado por esses cinco gigantes da crônica, também comecei a colocar no papel o meu olhar sobre as coisas comezinhas, tentando não imitar, mas seguir aquela sequência de fatos, utilizando-me da infinita galeria de personagens, que é a vida.
Nascia aí o cronista, mas eu não apenas não sabia disso, como não poderia imaginar que aquela criança que inventava histórias, de fato, um dia publicaria um livro, e que este livro não seria de invencionices. Criação, sim, sem dúvida. Todo texto se enquadra aí, no processo, para alguns divino, da centelha criativa, aquela que faz algo nascer e, com sorte, gerar frutos.
Antes disso, porém, conheci outros cronistas brasileiros maravilhosos (aliás, eis um gênero que, embora praticado de diversas maneiras em outros países, me parece brasileiríssimo), e a contemporaneidade nos deu outros grandes cronistas. Se estão distante do romantismo ao qual estamos acostumados a associar os tempos boêmios que serviam de mote para as crônicas de Vinicius de Moraes, por exemplo, porque afinal os tempos hoje exigem uma visão mais atravessada das coisas, são igualmente bons por usarem-se de suas crônicas para fazer aquilo que é a vocação primeira do gênero: narrar seu tempo. Se o escritor conseguir fazê-lo de forma atemporal, melhor ainda. Grande é o texto que domina o leitor de forma universal. Assim, nasceram para mim gente do quilate da Vanessa Barbara, Antonio Prata, Eliane Brum, Claudia Tajes, Luís Henrique Pellanda, Everardo Norões, Marcelo Mirisola, Xico Sá, Inês Pedrosa, Rosa Montero – e até da turma do “ame-os ou deixe-os”, como Martha Medeiros e Gregório Duvivier.
A gênesis da crônica se dá a partir da observação do mundo. Do abrir-se e estar atento para o que rodeia o cronista. Ela geralmente nasce de uma pergunta, de uma inquietação pessoal ou coletiva (algo que estiver no noticiário no momento e sendo amplamente questionado) ou de uma indignação. Dizendo assim pode-se incorrer no risco de achar que a crônica é algo sempre pesado, sempre crítico ou irônico. Não é. Basta olhar a leveza e a doçura das crônicas de Vinicius de Moraes ou Carlos Drummond de Andrade – bastiões do gênero.
E uma coisa vai levando à outra. Se observo algo que me toca e decido escrever sobre aquilo, ao sentar diante da tela branca, apenas com a ideia do assunto na cabeça, as palavras vão jorrando, e o assunto que me tocou inicialmente passa a dialogar com outros, resultando no mosaico que é um texto criativo. Não é, contudo, tão fácil quanto parece. Assim como em qualquer texto com o qual se pretenda atingir um público leitor, há muita escrita e reescrita, muitos recomeços, mudança na ordem dos parágrafos. Às vezes algo que se pensava ser o início da crônica acaba sendo, na verdade, um parágrafo lá da metade dela – e eis aí a graça, o vigor e a tenacidade do processo criador e criativo. Sem contar as várias releituras de um mesmo texto, até a hora de entregá-lo para sua publicação – quando aí o desapego tem de ser algo certo e definitivo; não se mexe num texto ad eternum.
Para mim, o processo ganhou outros contornos recentemente. Eu já vinha escrevendo crônicas há quase dez anos (atualmente já passei um pouco dessa marca, se é que isso importa), de forma muito esparsa, num ciclo de escrever e jogar fora que parecia não ter fim, até que nasceu o meu blog, o Qual é a tua obra?, que deveria ter se chamado Pensamentos imperfeitos, mas já existia um com esse nome. Também pensei em chamá-lo Expurgos, que era o que aqueles textos significavam pra mim, mas depois olhei para o livro de Mario Sergio Cortella (outro grande cronista, por que não?) e, embora sabendo do risco de que a palavra “obra” poderia remeter à ideia de igreja e religião, decidi-me por ele.
O blog durou pouco mais de quatro anos e resultou em boas e bonitas amizades. O que também acabou por gerar frutos. Durante anos, recusei-me a ser colaborador regular de outros blogs. Escrevia um texto pra um ou outro ocasionalmente, mas não queria me comprometer, porque não teria tempo de gerir o meu e ainda ter a obrigação de entregar textos para um blog que não fosse o que eu havia criado. Até que surgiu o portal LiteraturaBr, onde a mim foi dada a liberdade de escrever sobre o que eu quisesse, contanto que eu tivesse um acordo de regularidade. Podia ser uma vez por semana, por mês, desde que eu cumprisse o acordado.
E há coisa mais bonita do que a liberdade?
Topei. E como eu previa, ficou difícil administrar dois blogs, porque eu não podia simplesmente reproduzir o texto escrito para um, no outro. Mas a possibilidade de ser ainda mais plural no LiteraturaBr, mais até do que no meu próprio, me seduzia. Eu fui percebendo que enquanto no Qual é a tua obra? os textos estavam ficando sisudos, no LiteraturaBr eu brincava, eu me deleitava com as palavras, assumindo uma personalidade que, embora soubesse ser minha, não reconheci imediatamente em mim – e aquilo me assustou, mas eu segui adiante.
A proposta foi a de escrever mensalmente alguma provocação literária, algum texto que tivesse a literatura como mote – e se eu quisesse colaborar com resenhas e crônicas de outros temas, também podia, a qualquer tempo. Aprendi a utilizar-me de artifícios que aos poucos vou refinando. Aprendi a ser leve – e pesado também, na hora que julgo ser a certa.
Algum tempo depois, surgiu a ideia para um livro de crônicas. Eu e meu editor pensamos juntos, e decidimos que iríamos levar o mesmo tom das crônicas do portal para as crônicas do livro. Passei a me dedicar à escrita de vários textos inéditos, especialmente para a obra.
E foi numa conversa informal que surgiu o título, que é o mesmo de uma das crônicas. Estava nascendo Os escritores que eu matei, um livro do qual muito me orgulho e que ajudou a consolidar o cronista que existe em mim. Sim, sou cronista. Sou muitas outras coisas, e também isto.
Clarice Lispector, que viveu menos de sessenta anos, disse (numa crônica) que na vida há tempo para tudo. Exíguo como seja, o tempo, que cobra seu preço a cada instante, fala as suas verdades. E quem vive sua verdade terá tempo. Não para fazer tudo, porque imperfeita como é, a vida sempre ficará incompleta.
Mas enquanto ela existe, que sejamos plurais e abertos. E assim como quase todos os mencionados nesta crônica, que enveredaram também por outros caminhos na literatura, e conquanto eu saiba que jamais abandonarei o gênero, começo a trilhar o caminho rumo a um livro de contos.
Estou pronto, 2015. Pode vir.