NONATO, CAPÍTULO 2
2.
Nonato nasceu numa quinta-feira, no horário de almoço. Durante o parto, os médicos descobriram o cordão umbilical enrolado em torno de seu pescoço. Nonato veio ao mundo quieto e sem ar. Nem a morte nem a vida pareceram prestar muita atenção.
***
No dia da morte de sua mãe, que na verdade foram cinco dias e oito horas, Nonato apenas vagou sem rumo pelo bairro. O movimento das pernas ajudava a perceber o sangue circulando pelo seu corpo. O negativo.
Caminhava em círculos, da locadora de vídeos à pracinha e de volta outra vez. Apenas se deixava levar pela correnteza dos próprios pensamentos. Fragmentos de música, desenhos animados, livros que não se lembrava de ter lido e pessoas que já havia esquecido há tempos. À medida que percorria o bairro, portas iam fechando e luzes apagando ao seu redor. Já deviam ser nove horas, talvez mais.
Pensava na mãe, estirada no chão da cozinha. No sangue, também O negativo, que cobria seu corpo inteiro. Tentou comparar o cadáver à mulher que o criou, mas não conseguiu. A figura morta mais parecia uma bactéria amorfa dos livros de biologia. Uma massa de sangue e tecido, como se a faca do assassino fosse um cinzel ao contrário, transformando Davi de volta em um bloco de mármore.
Outra vez a vontade de vomitar. A garganta queimando mascarava o nó na garganta. Máscaras dentro de máscaras.
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Desde muito cedo, o garoto descobriu que o segredo da invisibilidade consistia basicamente em não ser visto. Ser preto e pobre ajudava, mas havia algo mais além disso. Nonato nunca era o garoto mais calado, nem o mais tímido ou o mais educado ou o mais inteligente. Nunca deixava no ar um silêncio longo o suficiente que implicasse qualquer mistério sob a superfície de sua personalidade.
Na escola, era uma criança quieta, exceto quando não era. Era o aluno que ninguém lembrava na hora de dividir os grupos de trabalho. Passava sempre alguns pontos acima da média, mas sempre ia mal em Artes. Jogava na defesa e nunca era escolhido para o time. Tinha vários amigos, alguns dos quais lhe contavam segredos. Aos doze anos, deu seu primeiro beijo com uma menina alta demais para ser bonita.
Aprendeu a ler e escrever aos seis anos, a ficar sozinho enquanto a mãe trabalhava aos oito, a cometer pequenos furtos aos onze. Nem aí ele se destacava: era apenas mais um dos moleques da favela subindo na garupa de uma bicicleta e tentando conseguir dinheiro fácil. Ninguém parecia guardar recordações do rapaz limpinho, com um corte de cabelo ligeiramente errado. Era tudo o que se esperava, sem nunca atingir o ponto de ser recompensado por sua mediocridade.
Ele não sabia precisar em que momento o hábito se tornara tão deliberado quanto escovar os dentes. Todos os dias, vendo a mãe entrar e sair dos dois empregos (diarista e auxiliar de escritório), Nonato tornava-se um pouco menos opaco. Não ser tornou-se quem ele era. Se pensasse sobre isso, o que nunca fazia, tentaria inventar para si mesmo um propósito, uma vida melhor, uma infância sofrida. Mas não era nada, apenas um desaparecer lento que nunca se dera ao trabalho de explicar a si mesmo.
Agora, aos dezesseis anos e sozinho, olhava para o espelho e não enxergava mais nada.
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Nonato trabalhava como boy numa Torre Empresarial. No dia da entrevista, usara a camisa social que sua mãe havia passado para a ocasião. Ainda assim, sentia-se como se estivesse fantasiado, na sala branca e fria. Nonato sentou-se, desejou bom dia e perguntou como está o senhor. O chefe ficou impressionado com sua inteligência. Era muito educado, nem parecia que morava no... como era mesmo? Isso, esse bairro.
Seu Fernando (AB positivo), chefe de Nonato, viera de uma família de classe média baixa, mas gostava de pensar em si mesmo como um homem do povo. Apesar disso, dirigia um carro blindado. Gostava de piadas sobre homossexuais e loiras burras. Adorava filmes de zumbi e beber com amigos no clube da praia. Ficou feliz de proporcionar uma oportunidade ao rapaz. Estava tirando uma alma da sujeira das ruas, dando-lhe uma segunda chance.
Nonato não ganhava muito, mas seu Fernando achava que era o suficiente, considerando a dívida de gratidão envolvida.
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Nonato alcançou a Avenida e encontrou um grupo de ciclistas. Não os moleques que apostavam corrida no bairro, mas ciclistas de verdade, com roupas coladas, capacete e fitas laranja que brilhavam no escuro. Até uma ambulância, em marcha reduzida. Ele não foi visto enquanto navegava entre as senhoras de meia idade.
Às vezes, enquanto andava no meio da multidão, uma vertigem o tomava de assalto; uma vontade irresistível levantar os braços e encostar em alguém. Tinha certeza de que apenas atravessaria seus corpos, como um fantasma.
Nonato não soube em que momento pensou em matar Edmilson, mas a decisão deixou sua mente mais sossegada. Ele acabou aos pés da torre de guarda da Polícia Militar, uma construção maciça de concreto às margens da avenida perpetuamente engarrafada que separava a favela dos condomínios mais ricos. Encarou as fendas de atiradores, em desafio, mas ninguém olhou de volta.
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O bisavô de seu Fernando havia sido um fazendeiro dono de escravos. Dois pretos velhos e uma senhorinha que um dia havia sido moça, mas envelhecera rápido, sugada por todos os filhos que precisou botar fora.
Naquele tempo, não existiam tipos sanguíneos.
Os negros haviam sido tirados de suas mães e vendidos ainda meninos, numa época em que era cada vez mais difícil comprar outros seres humanos. Tempos de crise para o setor. Os pequenos aprenderam a trabalhar na roça, consertar a casa e tratar dos bichos. Trabalhavam todos os dias, eram presos à noite e ai de um piu que fosse, que apanhavam de cipó.
Apesar disso, o bisavô de seu Fernando ensinou ao filho dele, que por sua vez ensinou ao pai de seu Fernando, que então gostava de repetir em festas de família: “Não pode tirar o olho do preto. Preto não é gente, você doma ou você mata”.
Ilustração de Natália Maia.
Márcio Moreira é autor da coletânea de contos Odisseu e colunista do site Spoilers.