15 de janeiro de 2015

STALINGRADO RESISTE.

Saio pra fumar todas as noites. Religiosamente, todas as noites. O bairro é o mesmo desde que me entendo por gente, e já tenho com ele, um sentimento de território. Sou daqui.

O bairro é simples, desses de periferia. Apenas as avenidas principais são asfaltadas; todo o resto é calçamento. Calçadas e lamentos. Gosto disso. Na verdade, o que mais gosto é a sensação de invisibilidade que possuo, por mais antileonino que isso possa parecer. Neste momento, me sinto como um observador assíduo da dinâmica das coisas. Observo a tudo e a todos, e embora o caminho seja exatamente o mesmo de todos os dias, sempre há algo novo. Sempre há algo que precisa ser assistido.

Existem os transeuntes, mas não gosto muito dessa palavra. O que existe ali são pessoas. As pessoas resistem. As pessoas resistem a tudo, inclusive à noite, aos domingos, aos feriados e às humilhações diárias. Elas resistem até mesmo à minha rota e às minhas observações. “Stalingrado resiste”. Elas estão por ali e muitas delas não sabem por quê. Mas ali estão, e enquanto elas estiverem ali, Stalingrado há de resistir. Gosto dessa frase. Não que ela me traga à lembrança a Revolução Russa. Não. Não penso em 1917, nem em Lênin, nem Trotski, nem mesmo Stalin. Nem mesmo a lendária batalha que lá ocorreu me vem em mente. Apenas gostei da sonoridade dela quando li “Poema Sujo”. Gullar me apresentou um tipo novo de resistência: a resistência da sobrevivência cotidiana. Stalingrado há de resistir.

Continuo andando. O bairro é o Jangurussu, que se divide em conjuntos habitacionais. Zona Sul de Fortaleza. Uma Rússia ainda dos tempos dos czares, mas em cada bairro, reside sua Stalingrado. Minha Stalingrado é o Conjunto São Cristovão. Nome de santo, claro, como não podia ser diferente.

O lugar é relativamente pacífico. Os moradores são pessoas que resistem, e, quando muito cansados, mancam, e até rastejam. Alguns tombam pelo caminho.

A noite é repleta de fumaça. Até onde a vista alcança, existe fumaça. Fumaça de cigarro, de carros, de ônibus, de churrascarias e de espetinhos das esquinas. Existe o CUCA também, talvez a Jamaica daqui. Lá também há fumaça.

As pessoas que caminham tem sempre lugares e horários, e me sinto mal por não precisar ter horário e lugar à se chegar, e, ainda assim, percorrer o mesmo caminho, e fumar a mesma marca de cigarro, e pensar as mesmas coisas muitas vezes. Mas as coisas que vejo nunca são as mesmas.

De todos os dias, por incrível que pareça, o que mais merece atenção são os domingos. Gosto de pensar que o domingo funciona sob uma lógica diferente. Nada no domingo é normal, diria até que o domingo é o dia lisérgico da semana. No domingo, todos os estabelecimentos estão abertos, e as pessoas usam suas roupas de ano novo. Seja pra namorar na praça, seja pra ir à missa ou só pra se apresentar ao mundo. Mas eu sou apenas um observador disso tudo, e ando, como sempre ando, religiosamente, todas as noites. Acho que por isso passo despercebido, e isso é bom.

Existem os jogos de futebol que são transmitidos nos bares. Não condeno nenhum vício, por que haveria de condenar o ópio do povo? Não, eles merecem sua fantasia semanal, e não me sinto nem um pouco à vontade em ser contra isso. Observadores não reclamam. Isso ajuda Stalingrado a resistir.

Apesar de observar muitas coisas, o percurso diário geralmente dura poucos minutos. Dez ou quinze talvez. O suficiente eu diria. Às vezes canto no caminho. Penso no que tenho que fazer quando chegar em casa. Algumas vezes, penso até em escrever sobre o que vi, embora geralmente nada de absurdo aconteça. Apenas a sobrevivência acontecendo, e a vida me provando que pode muito bem acontecer sem mim. Pessoas caminhando e resistindo. Algumas mancando e outras tombando. E minha escrita como sempre, circular. Circular e repetitiva, ainda que goste de pensar que sempre surja algo de novo nas repetições. Assim como quando se relê um livro, são minhas caminhadas noturnas.

Mais do mesmo, mas sempre, bem mais do mais, e bem menos do mesmo. Enquanto isso, as pessoas estão lá fora, a fumaça está lá fora, a vida insiste em acontecer lá fora, enquanto tento, ainda que como um colonizador, trazer algo de lá pras minhas palavras. Mas talvez eu não deixe nada meu lá, e passe despercebido por tudo e todos, e pelos que mancam e tombam também. Enquanto isso, lá fora, no Grande Jangurussu, na Zona Sul de Fortaleza, Stalingrado insiste em resistir.