FLAQ – Festa Literária de Aquiraz – Várias impressões e um caso para Sherlock Holmes - Parte 2
O sábado amanheceu imperioso, sem caber em todos os espaços, se imiscuindo em frestas, réstias de sol enfeitando o dia, que parecia saber disso, convidando-nos para receber a literatura em Aquiraz. Ou melhor: ir ao encontro dela.
No segundo dia, que seria o meu último por lá, corri para a festa literária com o intuito de encontrar a escritora Socorro Acioli e fazer-lhe uma singela homenagem. Assim, percorri caminhos de asfalto tendo um céu limpo e claro à minha frente, estrada adentro, rumo ao encontro. Esperei pela autora na porta do local da festa, bem na entrada, com a alegria juvenil que só cabe àqueles que se reconhecem parcialmente crianças. Socorro chegou com o marido e a filha, entreguei-lhe o presente e me despedi com uma foto e um beijo carinhoso.
Homenagem feita, corri para o mini-curso de João Anzanello Carrascoza, com dicas de como escrever um conto. João é um cara bastante aberto, solícito, e ter sido seu aluno por algumas horas me encheu de orgulho.
Durante o curso, conheci também um outro escritor, André Argolo, que trabalha para a editora Global e que estava lá para fazer filmagens do evento para a editora. Eu não sabia nada sobre ele, mas logo descobri que ele já tem um livro de poemas publicado (pela editora Patuá), que desempenha um trabalho lindo na editora e escreve para o suplemento literário Rascunho, um dos mais respeitados do país. André é dono de um papo intimista, conversa com afeto e delicadeza e sua visão sobre a literatura daria toda uma crônica em sua homenagem. Enquanto interagíamos, antes, durante e depois do pequeno curso do Carrascoza, guardei a certeza de que ali estava um cara que provavelmente seria um grande amigo, se a distância geográfica não fosse um muro de Berlim ainda erguido (mas sem beligerância a separar as duas partes). E fiquei sorridente o dia todo, por ver e sentir na pele como a literatura é capaz de estreitar laços, ainda que, no nosso caso, tenha sido algo de vida breve. Mas o recado estava dado.
Terminado o curso e as conversas, era a minha vez de voltar a ser professor, e corri para Fortaleza para dar uma aula. De volta, minha aluna chegou e com poucos minutos de conversa, o destino estava traçado. Sendo ela uma grande entusiasta de tudo o que pode trazer novas sensações, descobertas e experiências (ou seja, é das minhas), topou mudar os planos e ir para a FLAQ no período da tarde.
Dirigimos os trinta e poucos quilômetros que separam minha casa do local da festa literária, conversando sobre nossas expectativas a respeito dos eventos que estavam programados, sobre os escritores que eu queria apresentar pra ela e as possibilidades que nos aguardavam.
Ao chegarmos, enfrentamos uma desorganização logo na entrada: as recepcionistas não sabiam informar se quem não estava inscrito, mas não iria usufruir das atividades do parque ecológico onde o evento acontecia, podia entrar sem pagar ingresso ou não. Uma outra disse logo que “não estamos abrindo exceção pra ninguém”. Eu não estava afim de comprar aquela briga, pegamos o crachá no qual é debitado o valor da entrada, a ser pago na saída juntamente com o que quer que se consumisse no local, e fomos adiante.
O tempo fugia – a amiga tinha compromissos em Fortaleza, não podíamos ficar por muito tempo. Como numa espécie de conto de fadas, tínhamos que ir embora antes de um determinado horário, do contrário ela perderia algo muito importante – sem direito a príncipe depois para dar a ela um final feliz.
Por conta disso, procuramos ser objetivos. O que não poderíamos imaginar, entretanto, eram as surpresas que nos aguardava.
Mais uma vez, Ignácio de Loyola Brandão apareceria do nada, como se brotasse do chão. Também tivemos o privilégio de conhecer dois grandes escritores, inesperadamente. E, no meio disso tudo, o roubo de um livro de forma inexplicada.
No mesmo espaço onde no dia interior falara Ilan Brenman, agora encontravam-se Bernardo Kucinski e Rodrigo Lacerda, ambos conversando sobre História e o romance histórico, num debate tão vibrante quanto emocionante, em que ambos defendiam seus pontos de vista com paixão, assertividade e de quebra ainda contavam causos pessoais, que os levaram a escrever suas mais recentens obras – a de Lacerda, narra a vida do avô, Carlos Lacerda. A de Kucinski, a dele próprio e as agruras que viveu na ditadura brasileira.
Terminado este momento, ambos foram a um espaço ao lado da livraria do evento, que por sua vez ficava ao lado do palco onde no dia anterior eu tinha visto Ignácio de Loyola Brandão conversar com seu editor.
Eu e minha amiga caminhamos para o tal espaço, composto de duas mesas postas lado a lado, juntas, dando a parecer que era apenas uma, e uma cadeira em casa uma delas. Quando chegamos lá, Rodrico e Bernardo já conversavam animadamente e atendiam algumas poucas pessoas. Pedi à minha amiga pra tirar uma foto com o Rodrigo, caso ele aceitasse, e outra com o Bernardo. Então, cheguei para o Rodrigo com seu livro na mão, ele autografou, muito simpático, e autorizou que tirássemos a foto. Em seguida fui para o lado de Bernardo. Coloquei minha sacola com os dois livros, um de cada autor, sobre a mesa. Nesse momento, vi que uma sacola branca com a logomarca da livraria ia sair na foto, e afastei-a para o lado. Minha amiga tirou a foto, eu agradeci, peguei a sacola com os livros e fomos a um outro ambiente.
Com a fome já apertando, adentramos ainda mais no parque ecológico, onde havia um restaurante. Sentamo-nos e fizemos os pedidos – comida apenas mais ou menos e um atendimento pífio.
Resolvi dar uma olhada no que havia sido escrito nos meus livros. O do Bernardo Kucinski estava ok, tudo certo. O do Rodrigo Lacerda estava autografado para alguma mulher de nome japonês.
Olhei para a minha amiga, confuso. Disse:
“O Rodrigo Lacerda autografou meu livro para outra pessoa.”
“Como é que é?”, indagou a amiga.
E eu repeti a afirmativa e mostrei o livro. Ela riu, aquela risada gostosa e verdadeira, que vem de algum lugar indizível. Depois disse: “Mas não pode ser. Eu vi a hora que ele escreveu o seu nome no livro!”.
Claro que eu não acreditei nisso. Achei que ela estava delirando. No ângulo em que estava, não tinha como ela ler meu nome sendo escrito no livro, imaginei eu. Falei que não havia problemas, que eu até achava interessante ter um livro que era pra ter sido autografado pra mim e que por alguma confusão mental, o autor escreveu outro nome.
Continuamos a conversar por mais alguns minutos sobre o caso, até que ela aventou a hipótese de que, em algum momento, meu livro fora trocado com o de alguém.
“Em que momento, Angélica? Foi confusão do Rodrigo Lacerda mesmo, sem dúvida. Não tem como ter tido essa troca de livros, eu recebi o livro das mãos dele e enfiei na sacola”.
Parecia mesmo ser um mistério de ordem sobrenatural. Algo para um Padre Quevedo. Tivesse sido um crime de morte, seria algo para Sherlock Holmes desvendar. Empenhados em encontrar uma solução, entre risadas e ideias, confabulávamos.
Até que veio a centelha esclarecedora.
De fato, eu havia recebido o meu livro das mãos de Rodrigo Lacerda e o havia posto na sacola, de onde tirei o do Bernardo Kucinski para que ele o assinasse. Na hora da foto com o Kucinski, entretanto, vi uma sacola sobre a mesa e a coloquei mais para um canto da mesa, para que a foto tivesse uma estética melhor. Tirada a foto, peguei a sacola, enfiei o livro dele dentro e saí de lá.
A solução para o mistério é a seguinte: eu também havia colocado minha sacola sobre a mesa. Ao sair, peguei uma outra sacola que também estava lá – uma sacola da mesma livraria onde eu comprara os livros dos dois autores, a livraria da festa literária, que continha um livro que Rodrigo Lacerda havia autografado para a esposa do Kucinski – o nome feminino japonês – e para o próprio Bernardo – que ele escrevera apenas “Bernardo”, em letras rápidas, daí a dificuldade de compreendê-las. A letra só se tornou legível com o mistério solucionado.
Compreendido o drama, nos levantamos, com um pouco de comida ainda nos pratos, pra ver se dava tempo de ver os dois autores e desfazer o mal-entendido.
Deu, mas foi por pouco.
Nenhum deles se encontrava mais sentado lá. Conversavam, já de pé, com outras pessoas do evento, em tom de despedida. Aproximei-me de Kucinski e fiz uma pergunta estúpida, na tentativa de quebrar o gelo com uma gaiatice:
“O senhor tem alguém na família de nome japonês?”
Ele olhou pra mim atravessado. Demorou dois segundos e respondeu dizendo: “Ah!, você que é o Marco que levou meu livro! Rapaz, precisamos desfazer esse equívoco.” – E sorriu. Pelo menos. Mas eu estava tão cego que demorei para perceber que a mulher de nome japonês estava exatamente ao lado dele. Uma senhora franzina, silenciosa e quieta como imaginamos que são os japoneses. Acabei por me sentir ainda pior. Antes que o sentimento se instalasse, ele já estava caminhando em direção ao caixa da livraria, de onde puxaram um exemplar, que ele me entregou. Chequei e vi meu nome lá dentro. Entreguei o que estava comigo para ele, que quis devolver um outro, que tinha comprado para repor o que havia sido levado, para a livraria. Não sei que fim teve essa parte da história, já que o exemplar já havia sido riscado – o terceiro dessa história – e eu, num misto de constrangimento e culpa, tratei de dar o fora dali o mais rapidamente que pude.
[Em tempo: já conversei brevemente sobre o ocorrido com o Rodrigo Lacerda, que me garantiu que ninguém ficou com raiva e todos foram para suas casas alegres e satisfeitos. Menos mal].
A história ainda não acaba aqui.
Depois de mais umas circuladas pelo espaço, reencontrei Ignácio de Loyola Brandão, a quem eu achava que não iria ver, porque sua despedida da FLAQ seria numa palestra dali a mais de uma hora – e por conta dos compromissos da amiga/aluna que viera comigo em Fortaleza, a tal altura já deveríamos estar de volta.
O encontro foi uma pequena festa. Ele conversava animadamente com uma senhora jovial, muito bonita, na mesma mesa que há pouco estava ocupada por Rodrigo Lacerda e Kucinski. Eu cheguei de mansinho, de mansinho, e mais uma vez ele olhou pra mim interrompendo uma conversa. Desta vez, entretanto, ele me olhou como quem já sabia que havia visto aquela pessoa em algum lugar. Sorri de volta, contei das histórias do dia anterior, pra acelerar o processo de reconhecimento (é querer abusar demais de um autor incansável, que passou dias no Ceará visitando comunidades, escolas, os cantos mais longínquos, mas que também deve ter seus limites) – dentre as quais, o fato de que a amiga que me acompanhara trouxera a edição do romance Zero que foi apreendida pela ditadura, e que muito emocionou o Ignácio quando ela tirou seu exemplar da bolsa para que ele assinasse. Tanto, que ele mencionou este fato durante a sua palestra, a qual assistimos juntos na noite de um dia antes.
Com seu bom humor sempre presente, como se detivesse o conhecimento da fórmula da vida, Ignácio sorriu e disse:
“Eu tenho que ir aqui nesta livraria e comprar um livro pra este rapaz. Foi a pessoa pra quem eu mais autografei livros nessa feira!”
Ao que eu, a esta altura sem saber o que dizer, disse a obviedade esperada, que o presente que ele poderia me dar era escrever mais e mais livros, e rapidamente tratei de entregar a ele os livros que eu acabara de comprar. Uns pra mim, outros para dar de presente. Ele assinou todos, escrevendo pequenos textos personalizados em cada um, com uma atenção e uma diligência inefáveis.
As pessoas chegavam à feira com olhares curiosos. Era nítido que muitos ali não tinham tanto acesso não apenas ao objeto livro, mas também a ver palestras e discussões em torno da arte, do fazer literário. E aquilo tudo era emocionante.
Sentei-me à uma mesa com a amiga que também é aluna. Ainda rindo do roubo involuntário, um pouco atordoados com a multitude de cenas, cores e acontecimentos, paramos e ficamos a observar longamente o que se desenrolava diante de nós. Naqueles minutos, nos isolamos um do outro. Éramos dois à mesa, mas cada qual em seu mundo, com suas próprias impressões do universo ao redor. E que bom que era assim. Ali, aluno e professor se fundiam com amizade e paixão pela leitura, cada qual desfrutando do sabor da vida à sua maneira.
Crianças pulavam e brincavam – e gritavam um pouco, também. Mas só o tanto suficiente para demonstrar que eram saudáveis. Jovens de ambos os sexos, nem tão mais jovens assim. Estavam todos ali, compartilhando do espaço, dos afetos, fazendo(-se) questionamentos, tateando, descobrindo.
E é justamente do descobrir – e do inventar – que a arte se faz e se renova. E é por sermos tão humanos que também seguimos o mesmo processo de descoberta e invenção, para que nós possamos nos renovar, por conseguinte – e através da arte, não morrer jamais.