1 de outubro de 2014

Galáxias - poemas para viagem

A poética de Galáxias, livro de Haroldo de Campos, antes de tudo propõe a ruptura com o verso tradicional. Quando eu falo em verso tradicional me refiro ao uso linear da escrita e o uso recorrente da métrica e da linguagem sentimental-subjetiva. Sendo assim, um leitor acostumado com a poesia clássica sentirá certa dificuldade para ler o Galáxias, mas vale lembrar que a linguagem do livro não é complexa. Um leitor de qualquer faixa etária pode, e deve, aventurar-se pelas linhas galácticas dessa obra que foi escrita durante os anos 1963 a 1976. Haroldo publicou alguns fragmentos do livro em revistas antes da publicação definitiva da obra em 1984.
 
O livro é todo fragmentário, sendo que cada página ocupa um poema-galáxia. Acredito que o título da obra remeta ao universo galáctico, e múltiplo, da linguagem. Pois toda a obra tem por base a linguagem. Nos deparamos portanto com um livro experimental. É inconcebivel rotular o livro como sendo apenas um livro que comporta poemas, ou, rotulá-lo como um livro de prosa-poética. A obra, devido a sua potencialidade poética esperimental, foge a todo tipo de rótulos. Caetano Veloso após a leitura do livro o chamou de proesia, devido a sua múltipla categorização de gêneros. Alias, a definição de gênero é impensável em um livro como esse.
 
O livro deve ser lido sem seguir um roteiro de viagem, isso é percebido ao não-numerar as páginas da obra. Como também não há separação de parágrafos nem títulos nos poemas, e não há sinais de pontuação. Estamos, portanto, diante de um livro de viagem. Inês Oseki-Deprê comenta sobre o livro intercalando a sua fala com a de Haroldo abaixo:


No momento da publicação integral de Galáxias, em 1984, Haroldo de Campos fez a seguinte apresentação: “O formante inicial de Galáxias(início/ fim) é de 1963, o terminal de 1976.” Trata- se de um “texto imaginado no limite extremo da poesia e da prosa, pulsão bioescritural em expansão galáctica entre estes dois formantes cambiáveis e cambiantes”, e tendo por ímã temático a viagem como livro ou o livro como viagem, e por isso mesmo entendido também como um “livro de ensaios, hoje retrospectivamente eu tenderia a vê-lo como uma insinuação épica que se resolveu numa epifânica.”


Eu sempre costumo dizer que é um livro que nunca se lê, sempre relemos, pois nunca chegamos no ponto final da absorção do livro. A cada leitura nova descobrimos algo que não tínhamos percebido antes. Por isso a alcunha de livro-viagem, pois sempre o leitor retorna a sua 'viagem' relendo a obra.
 
Em uma conferência, na Biblioteca Freudiana Brasileira, Haroldo de Campos comentou sobre o Galaxiasfornecendo um roteiro de leitura:


Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e se entrelaçam sem que nenhuma possa dominar as outras; este texto é uma galáxia de significantes e não uma estrutura de significados; não tem início; é reversível; e nela penetramos por diversas entradas, sem que nenhuma delas possa qualificar-se como principal; os códigos que mobiliza perfilam-se a perder de vista; eles não são dedutíveis (o sentido nesse texto nunca é submetido a um princípio de decisão e sim por um processo aleatório); os sistemas de significados podem apoderar-se desse texto absolutamente plural, mas seu número nunca é limitado, sua medida é o infinito da linguagem


'Uma leitura infinita' é assim que muitos dizem ser o livro de Haroldo. A infinitude de seu livro, como percebemos no depoimento acima, é a linguagem. Antonio Cícero, em Poesia e filosofia, defende o poema como “a escrita centrada na linguagem, a linguagem opaca e obscura, a linguagem como grade que impede a entrada no mundo, a resistência, a incompreensibilidade, o silêncio, o desaparecimento da poesia”. É nesse desaparecimento que surge o Galáxias. Livro-mundo, livro-objeto ou livro-jogo.
 
Ainda sobre a questão do subtítulo isto não é um livro de viagem, o autor Antônio Sérgio Bessa contrapõe essa ideia afirmando ser SIM um livro de viagens:


As Galáxiassão ricas em referências específicas aos eventos vividos por Campos em suas muitas viagens. Como as suas páginas não numeradas sugerem, a leitura de Galáxiasnão se destina a ser sequencial, e as referências a lugares e pessoas espalhadas por toda a série criam uma narrativa circular. A maior parte da ‘informação’ dispersa pelos cantos consiste em referências obscuras a experiências pessoais, e essas alusões e referências podem parecer irrelevantes ao leitor, como a pequena rua Budé na Île St Louis, em Paris, que é mencionada no Canto 13. Outras referências, no entanto, rememoram eventos importantes para o poeta, como “o prédio na via mameli terça-feira às 4 da tarde” no Canto 33, que evoca um encontro com Ezra Pound em Rapallo. O terceiro canto, que começa com um verso de Macbeth, de Shakespeare (“multitudinous seas incarnadine”), trata mais provavelmente de suas impressões ao atravessar o Atlântico pela primeira vez, enquanto outros cantos sugerem sua passagem por cidades europeias – Granada (Canto 2), Córdoba (Canto 5), Stuttgart (Canto 6), o País Basco (Canto 12), e assim por diante. Seu apreço pela viagem, é preciso ressaltar, não deve ser compreendido apenas como uma urgência de wanderlust, mas sim como um desejo de conhecer e aprender com os “grandes homens de seu tempo”, como Pound certa vez encorajou Hugh Kenner a fazer. Codificados nestas narrativas estão encontros com Max Bense, Eugen Gomringer, Karlheinz Stockhausen, Octavio Paz, Hélio Oiticica, Marshall McLuhan e Guimarães Rosa, entre outros.


Cada fragmento do livro nos liga a algum fio condutor da memoria do autor. O livro torna-se portanto expansivo. O mesmo autor, do trecho acima, comenta que o fragmento Circuladô de fulô, tem a sua origem nas viagens que Haroldo fez ao nordeste. E que este canto tem a sua origem em alguma canção nordestina de autor ainda não identificado. O mesmo trecho, Circuladô de fulô, foi musicado por Caetano Veloso. Encerro este debate-galáctico com o fragmento Circuladô de Fulô na íntegra:


circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol pois não tinha serventia metáfora pira ou quase o povo é o melhor artífice no seu martelo galopado no crivo do impossível no vivo do inviável no crisol do incrível do seu galope martelado e azeite e eixo do sol mas aquele fio aquele fio aquele gumefio azucrinado dentedoente como um fio demente plangendo seu viúvo desacorde num ruivo brasa de uivo esfaima circulado de fulo circulado de fulôôô porque eu não posso guiá veja este livro material de consumo este aodeus aedomodarálivro que eu arrumo e desarrumo que eu uno e desuno vagagem de vagamundo na virada do mundo que deus que demo te guie então porque eu não posso não ouso não pouso não troço não toco não troco senão nos meus miúdos nos meus réis nos meus anéis nos meus dez nos meus menos nos meus nadas nas minhas penas nas antenas nas galenas nessas ninhas mais pequenas chamadas de ninharias com veremos verbenas acúcares açucenas ou circunstâncias somenas tudo isso eu sei não conta tudo isso desaponta não sei mas ouça como canta louve como conta prove como dança e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desarmargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento de miramundo na miragem do segundo que pelo avesso fui dextro sendo avesso pelo sestro não guio porque não guio porque não posso guiá e não me peça memente mas more no meu momento desmande meu mandamento e não fie desafie e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o não no senão do sim ponha o não no im de mim ponha o não o não será tua demão
 
 
 
 
ARQUIVOS CONSULTADOS
 
OSEKI-DÉPRÉ, Inês. Leitura finita de um texto infinito: Galáxias de Haroldo de Campos.
 
CICERO, Antonio. Poesia e filosofia.Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012.
 
BESSA, Antônio Sérgio. Rupturas de estilos em Galáxias de Haroldo de Campos