Carta a Julio Cortázar
Sim, naquela época, final dos anos oitenta, imerso nos sonhos amplos da adolescência, de algum modo, mal intuía que o mundo pode viver muito bem sem literatura e que poderia viver melhor ainda sem o ser humano. Sim, sem saber quem nos curaria do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, saindo dos metros quadrados que ocupamos diariamente, desde o asfalto pegajoso que se chama mundo pela manhã até o ar falto do fim de tarde imundo, saturado de sangue dócil ainda que insubmisso, sem meio tijolo, tijolos inteiros empilhando uma satisfação canina, de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza de quem aperta entre os dedos uma colherinha e sente seu latejar metálico.
Naquela época, sim, saiu-me um coelhinho da garganta, insultando-me as certezas, como a da própria existência de si mesmo coelhinho branco, carregando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar em seu latejar infrene que se estende metálico entre o hábito que se vai enchendo de si mesmo quando ainda mal percebemos que estamos numa ordem fechada e sem saída e esse novo pedaço frágil e precário de nós mesmos que se chama acaso e é limite de outra coisa que só se conhece a partir do sonho e se manifesta numa manhã de primavera, como a deste dia, quando deslizamos entre o asco da notícia do telejornal e uma outra ordem, acaso tímida, sugerida, que se desenha junto a um trevo macio, envolve-o desde o focinho e então ergue as orelhas, olha-nos fundo como se se desprendesse o horizonte do vasto oceano. Céus, duas orelhas em riste, plantadas e madurando por um tempo, seja lá um mês seja até um take, uma tomada mínima de perspectiva, nesga para o outro lado, horizonte. Até que o coelhinho branco é descoberto pela piscicultura e revela-se com toda a verdade um corpinho rosado, translúcido, de hábitos aquáticos, que é a larva conhecida como axolote. E esta mesma larva, fantasma ou máscara é cultivada por uma estranha família que vê neles axolotes os tigres de que carecem.
Pousam os tigres agora. Ouçam! Ouvido na coxa. Zeus. Dioniso. Arimã imbolando Putin-Obama-Israel-Isis. Ovidio entre a mais estreita identificação de Yin e Yang.
por Marco Aqueiva
98% extrato cortaziano(*)
[1] Este texto que foi costurado, sintagma a sintagma, a partir de citações apropriadas de textos de Julio Cortázar foi lido na Quinta Poética (69a edição), na Casa das Rosas, em 25 de setembro, com curadoria de Paulo Ortiz. Carta a Julio Cortázar é uma das intervenções previstas no projeto “Nos próprios pelos”, contemplado pelo ProAC 2013 – Criação Literária-Prosa.